A recente substituição do Comando do Exército, realizada pelo governo Lula, reacendeu uma das feridas abertas no processo da Constituinte de 1988, que insiste em não cicatrizar. Durante os debates para formulação da nova carta, os militares realizaram diversos lobbies para salvaguardar seus interesses no controle das políticas de defesa e orçamento, garantindo diversos privilégios e autonomias. As Forças Armadas mantiveram parte de seu poder decisório logo após o fim do Regime Militar, configurando um quadro tutelar, cujos interesses da corporação castrense, muitas vezes, prevaleciam em contraposição ao poder civil.
A tutela empreendida pelos militares no governo Sarney foi mais um pacto político para salvaguardar os interesses dos homens de farda. Ao mesmo tempo em que o primeiro governo civil pós-regime militar recebeu apoio da caserna, suas políticas na área de defesa ficaram restritas aos interesses castrenses. Um dos principais retratos dessa situação tutelar foi a participação do então ministro de Exército, o general Leônidas Pires Gonçalves, em vários processos decisórios no governo Sarney, institucionalizando, frequentemente, suas opiniões acerca dos problemas nacionais.
A vitória de Bolsonaro representou a volta da caserna ao poder, quando o governo mais que dobrou o número de postos militares em cargos que pertenciam a civis.
O governo Collor realizou algumas mudanças para frear essas interferências quando destituiu o Sistema Nacional de Informações (SNI). Apesar de dissolver o SNI, Collor deu pouca atenção à área da inteligência e, mais uma vez, por falta de interesse civil, os militares mantiveram o controle sobre essas questões. Ironicamente, presidentes que deixaram de lado a questão do controle da inteligência no país tiveram suas atividades monitoradas por militares na Nova República. Em 2011, o Arquivo Nacional liberou documentos que evidenciam que até o governo Itamar Franco (1992-1994), oficiais da Aeronáutica monitoravam políticos, partidos e organizações de esquerda.
Os oitos anos em que FHC esteve à frente da Presidência redundaram em alguns avanços pontuais nas relações civis-militares no Brasil, principalmente, no tocante à criação da Política de Defesa Nacional e do Ministério da Defesa. Alicerçadas em um governo democrático, essas iniciativas ampliaram, mesmo que de maneira restrita, o debate da sociedade civil acerca dos interesses em defesa e do uso das Forças Armadas. Coincidência ou não, a partir do segundo presidente eleito por meio de eleições diretas, houve a possibilidade de impor determinado poder de decisão na construção dessas políticas.
Em comparação aos anos de FHC à frente do Palácio do Planalto, o governo Lula, em seu segundo mandato, aprimorou os mecanismos de controle civil sobre os militares ao nomear e respaldar as ações de seu quarto ministro da Defesa, Nelson Jobim. Para muitos, sua atuação significou, de fato, o primeiro mandato de um ministro da Defesa. Entre outras conquistas, Jobim ajudou a consolidar o Ministério da Defesa, isso por conta de sua reestruturação e capacidade de combater possíveis insubordinações militares ao recompor os princípios de hierarquia.
As crises políticas e econômicas presentes nos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer transformaram o cenário político-institucional brasileiro e abriram espaço para uma maior atuação de militares em políticas de segurança e ações com poder de polícia. Essas crises abasteceram os discursos e a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, tornando-se o primeiro militar reformado a assumir a Presidência após os anos de ditadura.
A vitória de Bolsonaro representou a volta da caserna ao poder, quando o governo mais que dobrou o número de postos militares em cargos que pertenciam a civis. Essa sobrecarga de militares reformados na administração civil e política do país retomou mecanismos de autonomias similares aos que ocorreram no processo da Constituinte. No entanto, vivendo uma nova conjuntura nacional, regional e mundial, no século XXI, os militares se viram relevantes politicamente para além de suas missões básicas institucionais e isso gerou uma crise de identidade no seio das Forças Armadas.
Receosos em perder protagonismo político e apoio social, parte dos militares criaram resistências retóricas internas à vitória de Lula, mas, em termos de corporação, não ultrapassaram a linha da legitimidade constitucional e da legalidade jurídica. O problema é que sendo exoneradas dos cargos administrativos, as Forças Armadas temem não conseguir sustentação política para os projetos de defesa, além de reduzirem sua capacidade de negociação para aumentos salariais.
Portanto, mais do que exercer novamente o controle civil sobre os militares, o governo Lula e a sociedade brasileira precisam se decidir acerca de quais Forças Armadas querem para si, além de entenderem quais serão suas missões prioritárias e como será efetivada, de fato, uma política nacional de defesa, que deve se desenvolver a partir das novas ameaças e desafios presentes no século XXI.
Victor Missiato é professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, doutor em História Política pela Unesp/Franca, analista político e autor de artigos e livros sobre o tema.