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| Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, incluiu na pauta de julgamento desta quinta-feira (23) o processo que poderá limitar o foro por prerrogativa de funções para autoridades públicas dos Três Poderes e Ministério Público. O julgamento do caso teve início na sessão de 31 de maio de 2017 e foi suspenso após pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

Naquela oportunidade, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu no seu voto a tese de que o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. A tese acompanhada pelos ministros Marco Aurélio, Rosa Weber e Cármen Lúcia expõe, em verdade, as fraturas das instituições nacionais e as violações sofridas pela Constituição Federal de 1988.

O objetivo era assegurar o desempenho do cargo sem cerceamentos arbitrários às atividades exercidas

O foro especial foi pensado originalmente como uma prerrogativa para o exercício das funções de determinadas autoridades públicas. O objetivo era assegurar o desempenho do cargo sem cerceamentos arbitrários às atividades exercidas, em sentido diametralmente oposto ao que ocorrera no regime autoritário que findava formalmente com o texto constitucional promulgado.

O constituinte brasileiro definiu que somente o STF pode investigar e processar criminalmente o presidente da república e o vice, os 28 ministros do governo federal, os 513 deputados federais, os 81 senadores, os 3 comandantes militares, os 90 ministros dos tribunais superiores, os 9 ministros do Tribunal de Contas e os 138 chefes de missão diplomática. As demais autoridades com foro – como governadores, secretários de estado, magistrados, membros do ministério público etc – são processados e julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça estaduais. Segundo levantamento feito pela Consultoria Legislativa do Senado, a prerrogativa beneficia atualmente mais de 54 mil pessoas no país.

O tempo mostrou que o significante e o significado do foro especial sofreram uma lenta mutação que o transformou de uma prerrogativa para o exercício do cargo relacionado às funções que desempenha para um privilégio pessoal para o crime no país. Espalham-se denúncias contra agentes públicos por abuso de autoridade, fraudes em licitação, desvios em contratos, propinas, vínculos com narcotráfico, venda de armas, grupos de extermínio, homicídio, prostituição, assédio sexual, lavagem de dinheiro, furto de automóveis, pedofilia, trabalho escravo, contrabando, descaminho etc.

Opinião da Gazeta: O privilégio do foro (editorial de 22 de novembro de 2017)

Opinião da Gazeta: Esse tal foro privilegiado (editorial de 27 de fevereiro de 2017)

A combinação entre foro especial, crime e a interpretação que prevalece neste momento de que o local de julgamento acompanha o cargo que a pessoa ocupa, explica, em boa medida, a impunidade vivida no país e a descrença da sociedade nas instituições de controle. Como revela a história recente do país, no caso de políticos do Executivo e do Legislativo, há um modus operandi mais evidente em que nomeação, exoneração, eleição e renúncia são utilizadas como táticas pessoais para mudar o foro em que tramita o processo, ganhar tempo e, se possível, atingir a prescrição dos crimes cometidos.

Segundo o ministro Barroso, o STF possui cerca de 500 processos criminais promovidos contra aproximadamente um terço dos parlamentares do Congresso Nacional. A situação é disfuncional, pois a arquitetura da suprema corte não foi desenhada estruturalmente para investigar e processar um número tão elevado. O efeito concreto é que na corte, como afirma o ministro, “já prescreveram, desde que o Supremo passou a atuar nesta matéria, mais de 200 processos. Portanto, essa é uma estatística que traz constrangimento e desprestígio para o STF”.

Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da república, destacou com precisão que a interpretação do foro por prerrogativa de função para todos os casos, independente do tempo e se estiver relacionado ao cargo, acarreta uma verdadeira “montanha-russa processual”, por possibilitar mudanças nas instâncias de julgamento, submetidas à nomeação ou à eleição do réu a cargos com prerrogativa de função.

A estatística apresentada pelo ministro Barroso e a análise de Janot demonstram a disfuncionalidade do sistema de controle das instituições brasileiras, o corporativismo, os privilégios estendidos para determinados grupos e a apropriação da esfera pública por determinadas facções para a prática de crime, ou seja, há pessoas que agem racionalmente no cargo que ocupam, considerando o benefício do foro especial e a referida estratégia da “montanha-russa processual”.

A leitura dos fatos a partir dos filtros constitucionais faz recomendar ao STF o acolhimento da interpretação de que o foro por prerrogativa de função se aplica apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. A decisão que revisita o sentido do foro especial é uma oportunidade para o STF iniciar uma reorientação das ações das instituições de controle estatais, evitando-se, assim, decisões como as proferidas no caso do senador Aécio Neves, que permitiram à assembleia estadual do Rio de Janeiro liberar – contra ordem judicial expressa – deputados investigados por prática de crimes contra o erário público. O foro, quando necessário, pode ser especial, mas não um privilégio.

Eduardo Faria Silva é coordenador dos cursos de Pós-Graduação em Direito da Universidade Positivo (UP) e coordenador da Pós-Graduação em Direito Constitucional e Democracia da mesma instituição.
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