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Opinião do dia 2

Fortalecer a água

Com o voto em lista, organizado por legenda, e não por candidato, a reforma política pretende fortalecer os partidos, congelando-os com todas as suas deficiências, especialmente a perda de caráter, decorrente da falta de identidade ideológica-conceitual-propositiva e do oportunismo imediatista que caracterizam a atividade política atual. No passado não era assim.

No Império, havia nítida diferença entre um partido e outro, e unidade dentro de cada um. Os partidos tinham identidade. MDB e Arena eram diferentes, e os militantes de cada um se identificavam entre si, com bandeiras claras. No Brasil de hoje, os candidatos de um mesmo partido pouco têm a ver uns com os outros. São da mesma sigla, mas não correligionários. Com a lista, hoje, fortaleceremos partidos que não existem de fato, como se tentássemos fortalecer a água. E só há duas maneiras de fortalecer a água: represando-a e liberando-a de uma só vez, em revolta geral contra tudo o que estiver à frente, ou congelando-a em blocos de gelo, firmes e mortos.

A votação em lista terá o mérito de fortalecer partidos sem identidade. Congelá-los nessas condições não trará vantagem para a seriedade da política. O candidato em primeiro lugar na lista pouco ou nada terá com aquele colocado logo abaixo, em segundo lugar. Na melhor das hipóteses, a arrumação das listas servirá para atender cada tendência interna, ou para fazer qualquer outra composição. Na pior, haverá compra de posição, com o financiador da campanha exigindo um lugar preferencial, que assegure sua eleição, na frente dos outros. Quanto mais poder um candidato tiver dentro do partido, mais chances terá de ser eleito, mesmo que o eleitor não queira votar nele. Pode-se dizer que, sabendo a ordem de apresentação dos candidatos, o eleitor votará em outro partido para não eleger os primeiros, caso não goste deles. Isso obrigará o eleitor a mudar de preferência partidária apenas para se livrar de candidatos de que não goste.

Exigir fidelidade partidária nessas condições é congelar as impurezas. Os partidos se manterão impuros e contaminados ideologicamente, corrompidos politicamente. Seus programas ficarão impossíveis. Serão partidos tão partidos que não serão mais partidos. Serão apenas siglas, existindo para cumprir uma obrigação formal da lei, não para unir pessoas com ideais comuns para o futuro do país. Seus membros serão apenas filiados, não militantes.

A solução, se a imposição da lista for desejável para fortalecer os partidos, será soltar as atuais amarras partidárias. E conceder uma moratória para que os filiados se movam e possam se transformar em militantes; para que os desiguais procurem seus iguais em outras siglas; para que os iguais se atraiam e os desiguais se afastem; para que os partidos puros se reafirmem; para que outros se desfaçam, se transformem; e para que outros surjam, se for preciso. Só depois a lista fará sentido, e muito sentido.

Uma moratória de algum tempo seria suficiente para que cada partido se afirme refundado, com o mesmo nome e programa, composto por aqueles que nele desejarem ficar, e pelos filiados descontentes de outras siglas, e para que outros se definam, se constituam como novas forças políticas. Assim, as siglas se transformarão em partidos.

Enquanto isso não for feito, a revolução intermediária é criar uma lista, na qual o eleitor escolhe um partido, e depois vota outra vez para escolher o nome que prefere naquela lista. O partido define a ordem em que os candidatos são apresentados, mas é o eleitor quem escolhe o candidato.

Só então as listas disporão de partidos a serem fortalecidos. Até lá, será como fortalecer a água, congelando-a no lugar de liberá-la. Pena que a idéia da lista eleitoral tenha dominado o debate da reforma política, quando seria o menos importante no conjunto de medidas que fariam a revolução política de que o Brasil precisa.

Cristovam Buarque é senador (PDT/DF).

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