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O filme Anatomia de uma queda, da diretora francesa Justine Triet, ganhador de prêmios como o Globo de Ouro e o Oscar, apresenta, em seu roteiro, a história de um julgamento acerca de um homicídio doméstico. A protagonista Sandra (Sandra Hüller) é acusada de matar o seu marido Samuel (Samuel Theis), e o enredo desenvolve-se trazendo questões interessantes acerca do relacionamento conjugal, da parentalidade, da memória individual e da autorresponsabilidade. Para este artigo, importa trazer à reflexão a questão dos direitos autorais.
No filme, ambos os protagonistas são escritores, mas Sandra se destaca pela eficiência no ofício e pelo sucesso de suas obras. Samuel critica Sandra por priorizar a vida profissional perante à vida doméstica, em que ele se percebe mais sobrecarregado. Para ele, este é o motivo de sua dificuldade em concretizar os seus trabalhos. Além do relacionamento afetivo, o roteiro apresenta sensibilidades presentes entre pares que se dedicam ao trabalho criativo.
Se os seus sujeitos são indivíduos criadores, na compreensão contemporânea na lei, este direito nem sempre foi assegurado a todas as pessoas.
Há duas dimensões discutidas no filme que suscitam a questão da autoria. A primeira diz respeito à criação de Samuel. Em uma ocasião, ele tem uma ideia, a qual compartilha com a esposa. Ambos se entusiasmam com o assunto, e Sandra resolve escrever sobre a idealização do marido, o que resultou na publicação consentida entre ambos, a qual teve grande retorno positivo. Passado o tempo, Samuel acusa Sandra de apropriar-se de sua ideia e se ressente pelo sucesso da esposa, acusando-a do furto de sua criatividade.
A segunda questão diz respeito a uma referência do filme à vida real do casal de artistas Carl Andre e Ana Mendieta. Este relacionamento também resultou no julgamento de um homicídio, que inspirou o roteiro de Anatomia de uma queda. Carl Andre, falecido em janeiro de 2024, foi um artista norte-americano de sucesso em vida. Ana Mendieta, cubana radicada nos Estados Unidos, teve uma morte trágica, em 1985, aos 37 anos, tendo caído da janela de um edifício, após uma discussão com o marido. Esta relação também apresentava conflitos relacionados aos espaços e às oportunidades desiguais que ambos os artistas tinham na vida profissional, tendo Carl Andre maior sucesso, até o momento da morte de Mendieta. Diante dessas questões, o que os direitos autorais têm a nos dizer?
Em relação ao primeiro questionamento, embora possamos pensar em um debate ético quanto à atitude de Sandra em desenvolver a ideia de Samuel, a Lei de Direitos Autorais brasileira (LDA), Lei 9610 de 1998, inspirada na Convenção de Berna de 1886, que oferece os pilares da proteção autoral internacionalmente, informa que ideias não são protegidas por direitos autorais.
Assim, o artigo sétimo da LDA prevê que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro (...)”. No caso do filme, embora Samuel tenha compartilhado a sua inspiração, não se dedicou a materializá-la, escrevê-la e publicá-la. O direito autoral, portanto, não alcança a proteção da criatividade de Samuel, mas, sim, protege a ideia expressa no livro escrito e publicado por Sandra.
Quanto aos fatos reais, que basearam a construção do roteiro, para além de questões da qualidade artística dos trabalhos de Carl Andre e Ana Mendieta, é importante situar o contexto sociológico e histórico das autorias. Ana Mendieta viveu um momento em que as oportunidades oferecidas aos artistas eram bastante desiguais em termos de gênero. Se contemporaneamente Mendieta é exaltada no campo da arte, isto se deve, não apenas à virtude de suas obras, mas ao engajamento de movimentos sociais pela diversidade e igualdade de gênero nos espaços expositivos.
Pensar na proteção do direito de autor enseja verificar a quem a legislação se destina. Se os seus sujeitos são indivíduos criadores, na compreensão contemporânea na lei, este direito nem sempre foi assegurado a todas as pessoas. O direito reflete as relações de poder na sociedade, e as mulheres nem sempre foram valorizadas como artistas, e as próprias obras de arte de Ana Mendieta expressam um ativismo feminista (ver, por exemplo, a série “Silhuetas” — 1973-1977 — da artista).
Anatomia de uma queda reverte a posição de gênero dos artistas reais nos seus personagens, mas não desqualifica as dificuldades enfrentadas pela mulher. Se, por um lado, apresenta como os papéis sociais obedecem a uma performatividade dinâmica, em que homens e mulheres não têm uma vocação fixa; por outro, demonstra como pode ser cínica a visão social para com uma mulher bem-sucedida. É sobre Sandra que recai a acusação da violência, de eventual negligência doméstica e os preconceitos associados à mulher.
Se a primeira discussão autoral responde à tecnicidade do direito de propriedade intelectual, a segunda enseja a reflexão de que o direito autoral requer um olhar sempre associado ao direito constitucional e aos direitos humanos, buscando corrigir as injustiças presentes em nossa sociedade.
Maria Helena Japiassu Marinho de Macedo, advogada preventiva nas áreas de Artes, Cultura e Propriedade Intelectual, é servidora pública no Itamaraty, cedida ao Ministério da Cultura, pesquisadora em Direitos Culturais e escritora.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos