Universidade Federal do Paraná na Praça Santos Andrade.| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

A tensão provocada no meio acadêmico pela ascensão do governo Bolsonaro e pelas idas e vindas no MEC vêm impedindo uma discussão mais serena e objetiva sobre os gastos da universidade pública brasileira. Entramos no terreno do tudo ou nada, terreno ideal para atolarmos e não sairmos do lugar. O gasto com o alunato, por exemplo, pouco tem sido pensado para imprimir aí maior racionalidade, extrair melhores resultados e, sobretudo, promover uma revalorização das vagas das universidades públicas, que infelizmente andam bastante desprestigiadas. Há algumas providências simples – mas antipáticas e antipopulistas – a serem tomadas neste sentido que certamente teriam impacto positivo sobre o orçamento das universidades e, especialmente, sobre a qualidade do ensino que oferecem.

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Antes de mais nada, é urgente reduzirmos o tempo concedido ao aluno para que conclua o seu curso. É ilógico permitir que um discente, cujo curso dura 48 meses, disponha por vezes de 84 meses ou mais para se formar. Além de constituir um gigantesco desperdício de dinheiro público, essa liberalidade gera uma série de efeitos colaterais, todos extremamente nocivos para a universidade. De saída, desestimula o esforço e secundariza o aprendizado. O raciocínio é simples: o aluno, pouco cobrado, desprovido de interesse intelectual e sem perspectivas no mercado de trabalho pós-universitário, vai deixando-se ficar na universidade, onde recebe ajuda para morar, comer e manter uma vida sem luxos mas tranquila. Por qual motivo um jovem em tal situação optaria por concluir o seu curso em 48 meses, se pode desfrutar dos benefícios citados por quase o dobro de tempo? Talvez esteja aí – nessa conduta racional em um sistema irracional – uma das causas centrais do alto índice de retenção que temos detectado nos cursos de licenciatura, e não no grau elevado das exigências acadêmicas, como supõe um certo pedagogismo populista que, sob as bênçãos do MEC, tem sufocado as nossas graduações.

Passou da hora de a universidade pública colocar limites à reprovação e punir o discente relapso

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Outra anomalia decorrente da longa permanência do aluno na universidade é a produção do denominado “estudante profissional”. O que torna o caso do estudante profissional ainda mais perverso do que o do relapso é que ele usa a vaga universitária, durante o máximo de tempo possível, simplesmente para organizar “juventudes partidárias” e recrutar membros para os ditos “movimentos sociais”, isso com o dinheiro do contribuinte e, muitas vezes, com um complemento salarial do partido e ou do movimento a que pertence. O “ser aluno” transforma-se num bico, num ganha pão, e, é claro, num meio de engatar uma carreira política.

Tal personagem, muito comum nos cursos de licenciatura e nas humanidades, usa ainda de mais duas brechas do sistema universitário público para se manter no “estado de estudante”: cursa alguns anos de vários cursos, aproveitando-se do fato de que não há limite para o cidadão usar uma vaga pública na universidade, desde que passe no vestibular – o discente pode iniciar Física, cursar dois semestres, reentrar em História, cursar mais dois ou três semestres, mantendo-se no sistema por mais de uma década; ou faz diferentes cursos sucessivamente – há casos de alunos que se diplomam em duas, três graduações de universidades públicas. Ambas as brechas são indicativos de como a universidade, neste quesito, gasta mal e de maneira injusta, sem qualquer compromisso com o bom senso. Ora, é coerente, justo ou eficaz que o contribuinte pague pela indecisão, pelo diletantismo ou pelas ambições políticas de alguns cidadãos? Porque não tapamos essas brechas, colocando limites àquele que quer cursar mais de um curso na universidade pública? A universidade é pública, acessível em princípio a todos os cidadãos, mas não deve se tornar um meio de vida para desocupados, indecisos e oportunistas.

Uma segunda medida urgente que precisamos tomar para valorizar e otimizar a vaga pública na universidade é aumentar a cobrança sobre o discente. Em boa parte dos cursos que oferecemos, a média é ridiculamente baixa, as chances de aprovação são incontáveis e as reprovações, mesmo aquelas decorrente da não presença do aluno (reprovação por faltas) não trazem maiores consequências para o reprovado, que muitas vezes não quer mesmo sair do sistema. Ora, é justo que o aluno, usuário de um programa de permanência estudantil, reprove por não “permanecer” em sala de aula e continue a receber os seus auxílios? É plausível, para ampliarmos o raciocínio, que um aluno reprove uma, duas, onze vezes durante a sua graduação – demonstrando que utiliza displicentemente o dinheiro do contribuinte – e não sofra qualquer penalidade por isso?

Rodrigo Constantino: Para que servem as universidades? (publicado em 27 de março de 2019)

Leia também: Universidade Pública para todos (artigo de Daniel Medeiros, publicado em 7 de maio de 2019)

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Passou da hora de a universidade pública colocar limites à reprovação e punir o discente relapso, inclusive com a perda da vaga. Trata-se, e as experiências de outros países demonstram, de um modo eficaz de aumentar o desempenho discente – que terá de se dedicar um pouco mais para manter-se no sistema – e valorizar a vaga pública. É preciso, e o momento que o país vive parece propício, parar de negar o real e aceitar que as práticas facilitadoras que adotamos ao longo das últimas décadas foram trágicas para a qualidade do ensino universitário e criaram gerações de profissionais desprovidos dos instrumentos lógicos e intelectuais mínimos para exercerem competentemente as suas profissões – é a geração do “eu sinto que”, “a minha vivência diz que”.

Trágica, igualmente, é a mentalidade que estamos produzindo quando irrigamos o sistema com bolsas e auxílios – e não falo aqui daqueles relacionados à pesquisa – que não exigem como contrapartida nada mais do que ser carente ou ser uma vítima de algum tentáculo do tal sistema – é a cultura do “Estado penitente”. Há pouco mais de uma década, as bolsas sociais existentes exigiam um desempenho acadêmico mínimo do usuário; de lá para cá, as exigências caíram uma atrás da outra, ao ponto de a universidade, hoje, manter um programa que em nada se distingue do bolsa família. Os estragos que tal política vem causando já são perceptíveis: desestímulo enorme à procura por bolsas científicas (que cobram relatórios e pesquisa); banalização da ideia, entre os jovens, de que é natural depender do Estado e de que esse Estado é sempre obrigado a atender, com presteza e a fundo perdido, as suas necessidades; fomento, nesse mesmo jovem, de uma aversão irracional ao trabalho regular e ao mercado; e destruição, desde cedo, daquilo que move as sociedades saudáveis, a vontade do indivíduo de empreender e de encontrar soluções para autonomamente manter a própria existência. Quais razões, senão a covardia, o medo do alarido dos beneficiados, justificam a não introdução de mecanismos que cobrem contrapartidas dos usuários de bolsas e auxílios? Exigências acadêmicas, sem dúvida, mas também a prestação de serviços à universidade e à comunidade, relacionados à área em que o aluno deverá atuar depois de graduado. Independente das utopias societárias alimentadas por cada um dos atores do meio universitário, é preciso constatar que, por hora, formamos indivíduos que vão atuar numa sociedade capitalista e de mercado, isto é, vão atuar numa sociedade onde “não existe almoço grátis”, e toda recompensa, salvo as decorrentes do crime ou da sorte, vem de um serviço prestado à comunidade.

Leia também: Universidade: autonomia, liberdade e dever (artigo de Percival Puggina, publicado em 3 de janeiro de 2019)

Leia também: Educação é outra história (artigo de Fausto Zamboni, publicado em 3 de agosto de 2018)

As quatro medidas referidas – redução do tempo de permanência nos cursos, estabelecimento de limites para ocupar uma vaga na universidade, aumento da cobrança acadêmica, com concomitante punição (perda de vaga) para os repetentes contumazes, e a introdução da exigência de contrapartidas (acadêmicas e não acadêmicas) para os usuários de benefícios (bolsas e auxílios) –, ainda que não gerassem a economia de um único centavo, o que não é provável, trariam maior racionalidade e eficácia para os gastos com o alunato, gastos que, de acordo com o último relatório do Banco Mundial, são suficientes para oferecermos aos nossos jovens uma formação menos medíocre do que a que temos oferecido, e prestar à sociedade, aos contribuintes, serviços melhores do que os que atualmente temos prestado.

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Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor de diversos livros sobre cultura brasileira.