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A presidente Dilma Rousseff assumiu o governo com uma dívida bruta, consolidada do setor público, de 53,4% do PIB; após o impeachment, essa dívida fechou 2016 correspondendo a 70% do PIB. Mais do que o nível, era o ritmo de crescimento dessa dívida que assustava os investidores. O rombo das contas da Previdência – que já era previsto e cuja reforma estava sendo debatida, mas sem efeito, por mais de duas décadas – veio nos atropelar. A partir de 2014 deixamos de ter superávits primários, aqueles que não incluem as despesas de juros na conta. Aqui no Brasil, superávit nominal, que inclui as despesas de juros, aparentemente só aparece em livros de Economia.
A equipe do ministro Henrique Meirelles, já no governo de Michel Temer, ao assumir o comando das políticas econômicas, teria de fazer um ajuste fiscal profundo, com aumento de impostos e/ou redução de gastos, para que a dívida parasse de subir. Entretanto, a economia estava muito fraca e o país estava saindo da pior recessão da história: o PIB caiu 3,5% em 2015 e outros 3,5% em 2016. Impor um ajuste fiscal seria contraproducente. A solução encontrada foi o “teto de gastos”, uma emenda à Constituição que estipulava que o máximo que poderia ser gasto a partir de então eram os gastos correntes de 2016, acrescidos da inflação acumulada no período. Não houve aumento de impostos, nem redução de gastos; o ajuste necessário se daria ao longo do tempo. Foi a solução possível, mas suficiente para ganhar a credibilidade junto aos investidores.
Com a aprovação do teto de gastos, a inflação cedeu e a taxa Selic, que estava em 14,25% na época do impeachment de Dilma, caiu para 6,5% no fim de março de 2018, mantendo-se nesse patamar até o fim do governo Temer. Nem a crise provocada pelo “Joesley Day” (a divulgação de áudios comprometedores sobre a relação da JBS com o presidente Temer e aliados) e nem a greve dos caminhoneiros desestabilizaram as políticas fiscais e monetárias. A consequência negativa principal foi a perda de capital político para aprovar a reforma da Previdência, que só foi implementada em 2019, com o protagonismo do parlamento e da equipe econômica do Ministério da Economia. Com esta reforma, a Selic pôde cair para 4,5%, antes de a pandemia de Covid-19 eclodir.
Apesar de termos apresentado resultados fiscais bastante promissores, nossas lideranças estão jogando fora todo o esforço realizado em troca de vantagens eleitorais bastante duvidosas.
Ao longo do tempo, em vez de o governo Bolsonaro implementar reformas que garantissem um controle maior sobre os gastos correntes do governo (reforma administrativa) e impulsionassem a produtividade e a renda (reforma tributária), o presidente e o Centrão focaram no aumento de popularidade que Bolsonaro teve quando foi dado o auxílio emergencial. O Congresso poderia abrir espaço no orçamento para financiar o almejado Auxílio Brasil, mas os congressistas (os do Centrão em particular) não querem discutir redução de outros gastos discricionários e muito menos abrir mão do espaço conquistado no orçamento através de instrumentos pouco transparentes e nada democráticos como as chamadas “emendas do relator-geral”, pelas quais cerca de R$ 30 bilhões podem ser alocados livremente pelo grupo hegemônico do Congresso, sem justificativa e sem prestação de contas. A Câmara dos Deputados tem poder real na definição do orçamento, mas não é responsabilizado pelos eleitores pelas consequências. Ninguém se lembra em quem votou para deputado. Precisamos mudar para um sistema distrital na eleição de deputados, para que eles se sintam cobrados pelas suas bases e para que tornem o processo de discussão do orçamento o mais transparente possível.
Depois de tantos bons serviços prestados, o teto de gastos está sendo sacrificado no altar do populismo fiscal, na esperança de que os deuses tragam uma chuva de votos para os deputados do Centrão. Bolsonaro não sabe para qual deus rezar; já rezou para os da anticorrupção e do liberalismo, e os traiu. Parece que é fiel mesmo ao das armas, mas esse não costuma trazer muitos votos.
Com o sacrifício do teto de gastos, o Banco Central se vê sozinho na luta contra a inflação. Entretanto, suas armas (taxa de juros, Selic) são eficazes para inflação de demanda, mas pouco eficazes contra os choques de oferta que vemos nessa retomada desigual. Os governos dos países avançados deram auxílios generosos aos mais vulneráveis, a demanda veio mais forte e rápido que a oferta, causando muito atraso na entrega de encomendas ao longo de várias cadeias produtivas ao redor do mundo, provocando aumento generalizado de preços.
Apesar de termos apresentado resultados fiscais bastante promissores, nossas lideranças estão jogando fora todo o esforço realizado em troca de vantagens eleitorais bastante duvidosas. Com o fim prematuro do teto de gastos, o Banco Central terá de subir a taxa Selic acima do que seria necessário, pois ele terá de inibir mais do que o necessário a demanda do setor privado (consumo e investimento) porque haverá maior gasto (e transferências) vindo do setor público. Assim, sem teto de gastos, não há mais nada que evite que a dívida pública volte a crescer sem controle, fazendo com que o crescimento do PIB caia, sem piso.
Josilmar Cordenonssi Cia é graduado em Economia, mestre e doutor em Administração de Empresas, e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.