Tornou-se “verdade comum”, regra quase indiscutível no Brasil, a indelével contradição entre o malfeitor da gestão pública – a “ideologia” – e o salvador da pátria, vestido com avental de beleza puritana – o pragmatismo burocrático, com a comenda da supremacia indelével da opinião, cominada pela pitonisa tecnológica, a “mãe internet”, e pelo xamã colorido, a “grande mídia”.
Os qualificados como “ideólogos”, que curiosamente “apareceram” no palco de relevância política, “após” a ascensão de um dito governo de “direita”, estariam a aniquilar a gestão pública, a criar furacão destrutivo na organização de programas e, acima de tudo, a divulgar inverdades insossas. Ideologia passou a ser palavrão, condição atribuída a homens tomados por loucura, espécie de reprodução de slogans por grupo em autocomiseração.
Trata-se de banalização seríssima do termo, de minoração do significado e, certamente, de desserviço que matiza e majora a insensatez moderna da simplificação da natureza humana, a limitação do homem a simples construto corporal com conteúdo sociológico. Decerto isso é uma espécie de determinismo anômalo, em que se busca a programação das pessoas conforme valores autoritariamente ditos verdades, não obstante mostrarem-se particularidades singulares, com fins interessados por grupelhos políticos.
Tirante o “crítico” ideológico – defensor da igualdade de classes –, todo o resto dos “ideólogos” é posto na prateleira preconceituosa de místicos ou de loucos, em oposição direta aos respeitáveis burocratas
Após a criação do termo, no Iluminismo, por Destutt de Trascy, “ideologia” sofreu constante reinterpretação, ao longo do tempo, cominando em dois significados difundidos: por um lado, o pejorativamente chamado de “conceito forte” de ideologia; por outro, a sua antípoda, o “conceito fraco”.
O “conceito forte” de ideologia referir-se-ia ao construto de valores comungados por grupo de pessoas tomado por pensamento autodenominado “crítico”, com intuito específico de promover a igualdade econômica e de pôr abaixo a opressão de uma classe, a dos burgueses e dominantes, contra outra, a sofrida e, por isso, maioria dominada. Nesse dito “conceito forte”, que estou tomando como conceito marxista, “ideologia” tem o sentido de “falsas representações do mundo”, como se pode compreender no livro A Ideologia Alemã.
O “conceito fraco”, por seu turno, cunhado no sentido filosófico de “ideologia” como feixe valorativo compartilhado por reconhecimento mútuo, difusamente direcionando as pessoas para determinado fim, inserindo, em diversos espaços sociais, “comportamentos” conforme princípios compartilhados. Este “conceito fraco de ideologia” acabou estigmatizado como oposto à ciência, dada a sua conjeturada “abstração”, o seguimento “apaixonado” sem embasamento objetivo, em detrimento das “constatações dos cientistas”. Entendo que esta apreciação de ideologia, que a opôs a uma interpretação da realidade tal como ela é, é exatamente o conceito de ideologia em Marx.
Tirante o “crítico” ideológico – defensor da igualdade de classes –, todo o resto dos “ideólogos” é posto na prateleira preconceituosa de místicos ou de loucos, em oposição direta aos respeitáveis burocratas que atuam conforme os resultados de um sistema considerado suficiente pela norma oficial.
Nesse ambiente arbitrário, confirma-se a regra efetiva de que os cientistas sérios devem buscar a utópica neutralidade axiológica, passaporte para a legitimidade de suas opiniões entre os seus pares. Criou-se, portanto, hiato exagerado entre ideologia e ciência, sob a falsa impressão de que os cientistas sérios não teriam ideologias, de que a neutralidade “positivista” não seria ideológica.
Todavia, eis um conceito escorreito de ideologia: feixe de ideias compartilhadas por grupo determinado, direcionando atos dos indivíduos, conforme valores, sendo esses, por seu turno, potências propriamente humanas de atribuir preferência a aspecto do real, em detrimento de outros, por conta de expectativa disposta hermeneuticamente por esperança e desconforto, quanto ao futuro e por preterição ou louvor quanto ao passado.
O homem é animal ideológico. A advocacia de negar opções por crenças ideológicas, Leitmotiv da neutralidade científica, é ideológica!
Não se pode negar se tratar de conceituação que, sem sombra de dúvidas, qualifica tipicamente o ser humano, diferençando-o de outras espécies: não encontramos pelas ruas punhado de cachorros protestando contra o aborto ou amontoado de abelhas pleiteando o direito de permanecerem em colmeia alheia – a função social da propriedade por si defendida.
O homem é animal ideológico. A advocacia de negar opções por crenças ideológicas, Leitmotiv da neutralidade científica, é ideológica! O valor reinante, nesse caso, é o do neutro e que se positiva, após a verificação de dados repetidos, captados em ambientes pré-estabelecidos como ideais conforme os princípios de decidida ciência. A distinção que poderíamos fazer é que a ciência é um sistema de ideias – uma ideologia neste baleado – que se pretende irrefutável e que deve conviver com outros sistemas de ideias, constituindo-se meras interpretações acerca do mundo. Há clara distinção entre a força ideológica de tese científica, por exemplo, se comparada com a fragilidade hipotética da luta de classes.
De nenhum modo essa constatação significa minorar a importância das evidências científicas ou, de outro modo, negá-las por estilo peremptório, mas procura-se simplesmente a constatação de que a complexidade da natureza humana não pode ser limitada por exata (e única) régua de interpretação da realidade, bem como, que qualquer posicionamento de sujeito consciente de seus estudos, direcionado por propostas, é necessariamente de cunho ideológico.
O documento-mor da educação pátria, a Base Nacional Comum Curricular, traz, em inúmeros trechos, o termo “ideologia”, sobretudo como elemento a ser clareado e trabalhado pelo mestre com seu alunado
Antes de qualquer atitude científica, o especialista é movido por crenças propriamente suas, por escolhas e por sacrifícios os quais, por seu turno, estribam em procedimento crido por si como suficiente para a satisfação do intuito buscado. Sendo assim, mostra-se injusta a “satanização” dos pejorativamente ditos “ideólogos”, porque a crítica passa a ser politicamente direcionada ao “grupo ideológico” que não satisfaz o interesse dos que detêm o poder de comunicação ou financeiro em dado instante, sendo esses, aliás, os que especificam os preceitos de quem há de ser tido como louco ou louvado como sábio, repetindo a mentira, até que verdade se torne.
E o tema não é vão, sobretudo no que toca à educação. Em recente decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.537, cujo objeto fora o da pretensão da abolição de lei que impedia o professorado de expor seus temas interpretando-os ideologicamente, o ministro Roberto Barroso disse categoricamente: “a ideia da neutralidade política e ideológica da lei estadual é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e à promoção da tolerância, tal como previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação”. E que “a exigência da neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala”.
Não bastando isso, o documento-mor da educação pátria, a Base Nacional Comum Curricular, traz, em inúmeros trechos, o termo “ideologia”, sobretudo como elemento a ser clareado e trabalhado pelo mestre com seu alunado. Entre as “Competências Específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental”, insere-se, no item 7, o “reconhecer o texto como lugar de manifestação e negociação de sentidos, valores e ideologias”, uma habilidade tomada como necessária. Verifica-se, nesse mesmo texto normativo para a educação pátria, a habilidade relacionada à disciplina de História para ensino fundamental (EF08HI23), no que toca às “configurações do mundo no século 19”, a saber, a de “estabelecer relações causais entre as ideologias raciais e o determinismo no contexto do imperialismo europeu e seus impactos na África e na Ásia”. Leia-se como habilidade de Competência Específica 1, em Linguagens e suas Tecnologias no ensino médio (EM13LGG102), o “analisar visões de mundo, conflitos de interesse, preconceitos e ideologias presentes nos discursos veiculados nas diferentes mídias, ampliando suas possibilidades de explicação, interpretação e intervenção crítica da/na realidade”, sendo que, em similar temática, na Competência Específica 2, sustenta-se a habilidade esperada de que os alunos analisem “interesses, relações de poder e perspectivas de mundo nos discursos das diversas práticas de linguagem (artísticas, corporais e verbais), compreendendo criticamente o modo como circulam, constituem-se e (re)produzem significação e ideologias” (EM13LGG202). E isso sem contar as diversas obrigações reservadas pela BNCC ao professor, isto é, a de ter de se dedicar à “exposição” em suas aulas de objetos dependentes das ideologias, tais como valores, fenômenos políticos, culturais e artísticos.
Sendo assim, mais do que fetiche semântico, “ideologia” é tema obrigatório a ser levado em conta. Não pode ser abandonado, como espécie de malfeito ou de irrelevante posição anedótica supostamente prejudicial a questões “práticas”, adverso à “boa gestão pública”, à “ciência séria” e à “temática do docente em sala de aula”.
- Doutrinação ideológica e partidária: inexistente ou inevitável? (artigo de Bruno Bertolossi de Carvalho, publicado em 21 de maio de 2019)
- Ideologia na escola (artigo de Carlos Alberto Di Franco, publicado em 1.º de agosto de 2016)
- História, interpretação e ideologia (artigo de Angela Vidal da Silva Martins, publicado em 24 de novembro de 2016)
Em paralelo, destaca-se o papel do Estado, que há de garantir a liberdade de manifestação, em âmbito educacional, das variadas espécies de ideologias permeadas pelos discursos de professores e de estudantes e que, por isso, hão de livremente crer ou descrer em preceitos ideológicos que, destarte antagônicos, lhes são expostos.
A pluralidade acende saudável conflito e é sêmen do chamuscar dos gritos incautos da ignorância e de posições unilaterais que, travestidas de soluções absolutas, mostram suas penugens de tirania cesariocrata, preterindo o debate, amando o brado que ensurdece a racionalidade. Não à toa, o artigo 206, IV da carta constitucional insere, no ordenamento pátrio, fincado como um poder pétreo de princípio, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, regramento do ministrar do ensino em todos os níveis.
É claro que há ideologias que direcionam os homens para finalidades contrapostas à realidade, desvirtuando-os, fazendo-os atingir abstrações demoníacas, em que palavras assumem o lugar da realidade concreta, dos fatos. Cabe, pelo poder da consciência individual, o aprimorar da percepção da realidade para, uma vez verificado erro no eixo ideológico, promover-se o direcionar de atos ao abraço do verossímil, agindo-se sem devaneios, apartando-se de paixões insensatas.
Tiago Tondinelli, advogado, é doutor em Filosofia Medieval e pós-doutor em Direito.