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A noite ia alta. Ela dormia ao lado de duas crianças. No frio, ficar juntos era necessário. Durante o dia, um sábio falara sobre os riscos da vida e sobre a necessidade de se manterem juntos sempre. Em meio a sua família, ela se sentia segura, apesar de sofrer constantemente com sonhos terríveis. As noites eram sempre mais terríveis do que os dias por causa da escuridão do mundo. O mundo sempre fora um lugar escuro.

Desde pequena, quando seu pai ia caçar, ela temia pelo que pudesse acontecer. Preferia que todos se ocupassem das plantas que comiam. Sua mãe lhe dizia que controlar o medo era o que fazia uma mulher ser uma mulher e, assim, ter um homem que cuidasse dela e dos filhos que ela desse a ele.

De repente, um ruído ensurdecedor. Gritos de todos os lados. E, quando teve condição de se mexer, as cabanas estavam cercadas de homens. Com tochas nas mãos, eles gritavam para que todos acordassem. Seu irmão, que sempre fora um covarde, tentou fugir, mas teve sua cabeça cortada imediatamente.

As crianças gemiam e choravam. Na confusão, não se conseguia distinguir os rostos entre a luz amarela do fogo, o escuro da noite, a tinta nos rostos e os cabelos compridos dos homens que os cercavam.

As noites eram sempre mais terríveis do que os dias por causa da escuridão do mundo

Os homens, os velhos, as velhas e as crianças foram separados das mulheres. Esse comportamento a deixou em desespero porque começou a suspeitar do que estava para acontecer. As mulheres foram amarradas, mãos e pés. Gritavam nomes e choravam. Os outros todos foram amarrados e deitados no centro da pequena vila. Dois homens cavavam uma vala. Três invasores, com porretes, se aproximaram dos homens, dos velhos e das crianças alinhados, um ao lado do outro. Enquanto isso, um velho, que viera com os invasores, entoava algo que parecia um gemido, seguido de duas velhas.

No começo, ela não tinha percebido a presença de mulheres em meio ao ataque, ainda que velhas daquela idade não pudessem mais ser consideradas “mulheres” por conta da inutilidade de seu sexo. Via-se, às vezes, homens se deitarem com mulheres mais velhas, mas isso era considerado um ato monstruoso, já que o sexo de uma mulher velha era estéril, e, portanto, mal visto pelos ancestrais.

O ruído aumentou, enquanto os três invasores começavam a bater de modo ritmado nas pernas dos homens, dos velhos e das crianças. As mulheres amarradas faziam gestos, pedindo piedade, mas alguns dos invasores que as vigiavam sorriam para elas, como se esses gestos fossem engraçados. Um deles se aproximou de uma das amarradas e acariciou seus cabelos, lambendo seu rosto e sua boca com gosto.

Podia-se escutar o rachar das pernas. Imobilizados, foram todos arrastados até a vala, já quase pronta. Os homens, que tentavam desesperadamente se defender, nem amarrados mais estavam porque, com as pernas quebradas em vários lugares, nada podiam fazer. Tirar as cordas das suas mãos e pernas parecia ser um ato de orgulho para os invasores.

Enquanto isso se passava, dois invasores conversaram com algumas crianças que tinham vindo com eles. Prestando atenção, ela entendia que os homens mostravam para as crianças como fazer para quebrar as pernas dos outros, e assim torná-los uma presa fácil. Um dos homens parecia explicar que aquilo era necessário para a vida, assim como no dia anterior ela escutara sobre a necessidade de ficar juntos para sobreviver.

Tudo se passou muito rápido. Enquanto o velho e as duas velhas cantavam, os invasores, de modo ritmado, batiam na cabeça dos homens, dos velhos e das crianças, que, um a um, caiam mortos dentro da vala. O cheiro de sangue subia com o fogo. Em seguida, cobriram a vala, queimaram tudo, sem levar nada, apenas aquilo que tinham ido buscar ali: as mulheres.

Anos depois, ela contava, ao redor do fogo, para um grupo de meninas, o modo como ela e outras mães tinham sido gloriosamente roubadas de seu antigo bando, porque mulheres são muito importantes para uma família e, quando faltavam, os homens tinham de, corajosamente, roubá-las de outros bandos, para fazer delas suas esposas, e protegê-las.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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