Reza a lenda que Lady Godiva, para provar a seu real esposo que o povo que ele governava era bom, teria atravessado nua a cidade sem que nenhuma janela se abrisse, sem que ninguém olhasse para a nudez da rainha.
A moça de minissaia atacada aos urros por boçais em uma universidade brasileira parece ter provado, ao contrário, que o nosso povo é mau.
O que é bom ou mau, contudo, não são as pessoas, mas os mecanismos sociais de respeito e controle dos instintos. A natureza humana não muda. O ser humano já nasce predisposto a algumas coisas e contrário a outras. O que muda é a sociedade, que vai idealmente coibir e ordenar as expressões desordenadas desses princípios. Quando a sociedade preza o desrespeito, quando a sociedade trata a "irreverência" como um bem, ela está jogando fora os mecanismos pelos quais seriam impedidos os atos de crua boçalidade ocorridos na Uniban, os mesmos mecanismos que teriam resguardado Lady Godiva.
Mostrar-se nua como a Lady, ou vestida de modo provocante, como a universitária, é exibir abertamente toda a vulnerabilidade humana. Um corpo humano nu é, simbolicamente, o corpo de um ser indefeso. O respeito que os súditos de Lady Godiva teriam demonstrado indica a aceitação dos mecanismos pelos quais a sociedade protege os mais fracos, a perfeita reverência à ordem social como protetora de cada um. É esta que impede a lei do mais forte, que faz com que uma pessoa sozinha não tema ser atacada por qualquer bando.
Na nossa sociedade desordenada, no entanto, vence a irreverência. O corpo exposto da universitária suscita, como suscitaria o da Lady, o desejo desordenado de muitos. Em nossa sociedade, contudo, não há a reverência à dignidade humana que teria bastado para a proteção da Lady. A visão das coxas da moça já bastou para que os seus irreverentes colegas, desprovidos de um mínimo de autocontrole e introjeção das regras sociais de respeito ao próximo, urrassem e babassem como vira-latas que veem o gato passar por cima do muro.
Há, ainda, outra diferença enorme entre a aposta de Lady Godiva e a escolha de vestuário da universitária: enquanto aquela teria sabido o que poderia provocar e teria confiança na reverência de seus súditos, esta educada a pensar que posar para a Playboy é uma honra achou-se bonita ao ver-se no espelho antes de sair de casa, sem ter ideia do que a sua irreverente fantasia de alcatra despertaria em termos de boçalidade e selvageria nos demais irreverentes.
Em uma sociedade que jogou fora os mecanismos de proteção dos indivíduos (física ou mentalmente) mais fracos, cada um é a sua lei, e o permitido é o desejado. Se a moça decide que aquela é a roupa que lhe apraz, qualquer tentativa de convencê-la a usar uma roupa mais composta é considerada absurda.
A ordem social não pode ser imposta, ou não seria social. Chamar a polícia não é uso da ordem social, e sim o que se faz quando esta desapareceu. Os mecanismos de ordenação social dependem do autocontrole individual, da introjeção pessoal de padrões de comportamento que impedem tanto a provocação do boçal quanto a sua manifestação de boçalidade. Em outras palavras: em uma sociedade ordenada, nem a moça teria tido a inocência de achar que uma roupa provocante é simplesmente uma roupa bonita, nem os boçais que estudam (?) com ela teriam o desplante de achar que uma roupa provocante lhes daria o direito de agir como fizeram. Ambos se rebaixaram, eles muitíssimo mais do que ela.
O triste fato de a moça não ter aprendido a discernir a linha, que pode parecer tênue, entre enfeitar-se e exibir-se como carne de açougue não poderia jamais dar aos boçais que estudam com ela o direito de atacá-la como fizeram. O disfarce com que ela infelizmente resolveu ir à aula não faz dela menos humana ou menos digna de respeito, e os atos subumanos de seus colegas foram simplesmente imperdoáveis. Espero apenas que os boçais, animadinhos, não comecem agora a organizar grupelhos fascistas para impor padrões de vestuário; a coisa ainda pode ficar bem pior.
Carlos Ramalhete é filósofo e professor
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