• Carregando...

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial constatamos uma aceleração no processo de globalização. Em 1944, os acordos de Bretton Woods para gestão econômica internacional originaram instituições como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos realizada pela recém-criada (à época) Organização das Nações Unidas conferiu uma orientação de caráter solidário à ordem internacional. E, em 1957, encontramos as raízes históricas da atual União Europeia, sobretudo com a criação da Comunidade Econômica Europeia, através da assinatura do Tratado de Roma entre Itália, França, Alemanha Ocidental, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, para a instituição de um mercado comum.

Ainda que tenha estado sujeita a diversos avances e contratempos comuns a qualquer processo de integração regional, a União Europeia tem, como momento marcante para suas pretensões unificantes, a década de 90 do século passado, precisamente após a queda do Muro de Berlim e o fim da bipolaridade que imperava no plano das relações internacionais. Assim, em 1993 foi firmado o Tratado de Maastricht, que abre caminho para um modelo único de governança regional e, consequentemente, de uma série de decisões fundamentais para os países-membros e para a vida cotidiana dos cidadãos europeus, tais como a determinação dos critérios para implementação de uma moeda única (o euro), o que ocorre a partir de 1999; e a criação de uma política de abertura de fronteiras e de um espaço de livre circulação de pessoas dentro dos países signatários (o “espaço Schengen”), com a posterior assinatura do Tratado de Amsterdam, em 1997.

Toda essa nova perspectiva de integração assumida pela União Europeia tem um impacto em escala mundial, especialmente em termos de afirmação e disseminação dos valores ocidentais em um mundo em constante mutação, e de preservação de um sistema de garantias sociais que confere sobrevida ao modelo de Estado social que, de certo modo, se contrapõe à crescente onda neoliberal do processo de globalização.

Embora seja possível constatar um nítido e relevante processo de alargamento da União Europeia, que caminhava a passos largos para a consolidação de uma “identidade continental”, em 2005 o processo de integração sofreu um duro golpe com a não ratificação da Constituição Europeia com o resultado dos referendos na França e nos Países Baixos, colocando a entidade em uma crise de legitimação democrática para a aprovação de medidas tendentes a seu fortalecimento institucional. Como consequência dessa não aprovação, foi firmado o Tratado de Lisboa, em 2007, que praticamente substitui o falido projeto de adoção de uma Constituição Europeia apoiada pelo voto popular.

O “Brexit” pode afastar ainda mais a humanidade de um verdadeiro modelo de cooperação internacional

Outro importante fator histórico que enfraquece a integração europeia é a crise econômica global de 2008, causada pela explosão da chamada “bolha imobiliária” e que atinge diretamente os países da zona do euro, principalmente as economias de Grécia, Portugal, Espanha e Itália, momento a partir do qual passa a ser adotada uma forte política de austeridade, que implica no controle de gastos públicos para promoção de estabilidade orçamentária e que, por consequência, afeta importantes políticas sociais que eram praticadas na região.

Na semana passada, presenciamos um momento único na história política europeia – e, por que não?, mundial – com o resultado do referendo realizado no Reino Unido sobre sua permanência ou não na União Europeia. Por uma pequena margem de votos (51,9% contra 48,1%), o eleitorado determinou o denominado “Brexit”, ou seja, a saída da região do bloco europeu. As consequências do “Brexit” ainda são imprevisíveis para a construção do processo de integração europeia, mas já é possível verificar a partir das primeiras declarações, especialmente por parte de movimentos populistas de ultradireita como a Frente Nacional francesa e a Liga Norte italiana, que será instaurada uma crise de identidade de grandes proporções na região, haja vista o efeito dominó e o clamor pela realização de referendos similares nos mencionados países, seguindo o exemplo bretão.

Todo esse panorama político nos faz refletir sobre o “Brexit” em termos de conquistas para a consolidação de uma governança global. Para realizar esse exercício, devemos recordar a situação atual em que se encontra o mundo: a globalização dominada pelo modelo econômico neoliberal conduziu a humanidade a um desenfreado processo de consumo que afetou a sociedade em múltiplos aspectos, instaurando diversas crises que vão desde valores (como a atual liquidez das relações humanas), passando pelo aumento das desigualdades sociais e chegando até a questões ambientais emergenciais, como o caso da mudança climática.

Claramente, a solução de tais problemas exige um esforço político conjunto e urgente em escala mundial, que implica na necessidade de se repensar as estruturas institucionais dos Estados-nações, buscando novas formas de organização do poder e da soberania para a instauração de uma verdadeira e eficiente governança global, que permita o reforço dos laços de solidariedade para recriar o modelo contemporâneo de sociedade.

Nesse quadro, em que, ressaltamos, exige-se uma forma de instituição de governança global para preservação do patrimônio público mundial, a União Europeia, com seus acertos e erros, funciona como uma espécie de protótipo para a humanidade, uma complexa estrutura institucional que busca homogeneizar interesses em um espaço historicamente marcado por guerras e diferenças através de uma política, ao menos normativamente, de conteúdo consensual e democrático, que tem a intenção de defender os direitos humanos afirmados no mundo ocidental, que de uma maneira ou outra conserva determinadas garantias sociais e de regulação estatal, entre outras medidas fundamentais para conter o progressivo avanço do neoliberalismo selvagem que prejudica o mundo desde o século passado.

É lógico que existem diversos problemas nesse processo. Não podemos ser hipócritas em desconsiderar a liderança alemã que impõe austeridade para outros, mas não para si mesma; o obscuro tratado de livre comércio que está em negociação com os Estados Unidos; ou a ineficiente política de acolhimento de refugiados e o vergonhoso tratado assinado com a Turquia para solução do problema. Mas nosso ponto é o retrocesso institucional em termos de governança global que implica o “Brexit” e que pode afastar ainda mais a humanidade de um verdadeiro modelo de cooperação internacional para superação de problemas comuns. Esperaremos pelos próximos capítulos para maiores conclusões, mas, pelo teor das recentes repercussões, parece-nos que uma nova crise mundial já está se instalando.

Ernani Contipelli, professor titular do Programa de Pós-graduação em Direito da Unochapecó, é diretor do Center for European Strategic Research (Itália).
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]