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O Reino Unido consolidou-se com hegemonia inglesa quase ao mesmo tempo em que a monarquia era posta sob a lei e o Parlamento se tornava o centro do poder político. Na passagem dos anos 1600 para os 1700 começou a industrialização assentada nas máquinas movidas a vapor. A combinação entre engenharia política e engenharia mecânica fez da ilha brumosa o centro do mundo por mais de 200 anos.

Os reinos rixentos que faziam da ilha um campo de batalha infindável eram paupérrimos e susceptíveis a invasões estrangeiras. Tanto é que as Grandes Navegações começaram em Portugal, que tinha, além de semelhante vocação marítima, unidade política e jurídica sobre extensa base territorial para os padrões da época. Enquanto os ilhéus se engalfinhavam em guerras intestinas, os lusitanos descortinaram o Mundo.

Ingleses, escoceses, galeses e, manu militari, parcela de irlandeses, sob o pálio da Union Jack, conseguiram fazer o impossível: o rabo abanar o cachorro. A Europa continental é o corpo e a ilha, a cauda, nessa metáfora canina. Unidos, fizeram frente às pretensões imperiais de Espanha, França e Alemanha, sucessivamente. Nunca invadiram o continente como o Japão – o reino unido na outra ponta da Eurásia –, mas atravessaram o canal várias vezes para obstar expansionismos ou por defesa de princípios nobres, classificáveis no rol da democracia.

O plebiscito criou tensão na própria unidade do reino

United Kingdom, Union Jack. A palavra união repetida à exaustão nas instituições que dão identidade política e cultural aos britânicos. Qual a razão para ojeriza à União Europeia? Qual a inteligência do discurso de Boris Johnson (cuja cabeleira lembra a peruca de Donald Trump)? Populismo, populismo, populismo. Cupim da madeira da democracia, corrói até o cerne sem fazer alarido e só quando a casa cai se percebe que as colunas e vigas estavam fragilizadas.

Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, o da democracia idem. Democracia não é feita apenas de votos. Isso há até em Cuba. É preciso prudência, sobriedade, para não sucumbir a paixões ocasionais como o “Brexit”. Consulta a opinião pública realizada em outro contexto, com diferença de alguns meses, poderia dar outro resultado.

Aos defensores de plebiscitos e referendos em escala cotidiana, insta lembrar que as pessoas comuns querem viver as próprias vidas e não a dos outros, não a da coletividade. Tanto é que poucos comparecem para votar. Além disso, a magnitude dos temas deve ser escalonada no momento de auscultar a opinio populorum. Como admitir que sucessos eleitorais minúsculos produzam efeitos vitais para todos?

O erro da convocação do plebiscito sem estabelecer quórum mínimo de participação de eleitores, de maioria qualificada (no mínimo 2/3) para o resultado e, quiçá, dois turnos com regras sobre a distribuição geográfica dos votos levou a que os escoceses e norte-irlandeses votassem remain majoritariamente; ingleses e galeses, leave. Cidades cosmopolitas quiseram permanecer na União; sítios da Inglaterra rural optaram pelo isolamento.

Na verdade, o plebiscito criou tensão na própria unidade do reino, dando ensejo a discussões sobre secessão. Ora, se não há união lá, por que há cá, pensam os highlanders? Não bastante, compareceram para votar apenas 60% dos eleitores aptos e dessa parcela saiu a vitória do divórcio com apenas 2% de maioria. O “Brexit” é vontade do povo?

A Europa continental segue em frente como cachorro cotó. A insular, tal qual rabo sem corpo, fica solta e carente de significado. A isso se reduziu a terra dos anjos.

Friedmann Wendpap é doutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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