No ano de 2022, comemoram-se algumas datas históricas importantes. Além do reinado mais longo do Reino Unido, com Elizabeth II, celebramos o bicentenário da Independência do Brasil. Mas existe outro bicentenário, que, talvez, a maioria de nós não saiba: o do nascimento do “pai da genética”, Gregor Mendel, em 22 de julho de 1822.
De origem humilde, filho de horticultores, nascido numa cidadezinha rural no sul da Morávia chamada Heizendorf, no antigo império austro-húngaro (hoje, República Tcheca), nasceu Mendel, que, desde pequeno, sabia lidar com plantas. Sofrendo de escassos recursos financeiros, passou fome e adoecia com frequência, pois preferia investir nos seus estudos. Conta-se que até chegou a desmaiar numa aula de Matemática. Aos 18 anos, passou a estudar Filosofia de forma gratuita para os candidatos ao sacerdócio. Devidos às circunstâncias extremas de subsistência, viu-se obrigado a assumir a vida sacerdotal.
Em 1847, ordenou-se monge agostiniano em Brünn, hoje Brno, na República Tcheca. Lá lecionava Física, Matemática, Latim, Grego e Alemão. Com a autorização do superior do mosteiro, passou a estudar Zoologia e Botânica na Universidade de Viena, onde foi reprovado duas vezes para ser professor. Aos 33 anos, passou a cuidar dos jardins do mosteiro, onde iniciaria, alguns anos mais tarde, suas famosas hibridações com ervilhas, às quais se referia como “filhas”, e, aos 46 anos, foi eleito abade do mosteiro por unanimidade.
Quem poderia imaginar que um monge recluso em sua horta se tornaria o precursor de uma ciência que mais tarde se chamaria Genética?
Mendel legou à humanidade uma das maiores descobertas de toda a história da ciência e não havia, na época, uma única pessoa sequer que a compreendesse ao ponto de lhe dar o justo valor.
Em fevereiro de 1865, terminada as suas pesquisas com milhares de sementes de ervilhas, apresentou o seu trabalho na Sociedade dos Naturalistas de Brünn, cuja banca contava com expoentes cientistas. Um ano após, publicou-o numa revista científica de pequena projeção internacional com o título Versuche ueber planzenhybriden Verh (Experimentos em Híbridos de Plantas).
Na época, o trabalho de Mendel não encontrou um único cientista que o compreendesse integralmente, talvez porque o ambiente científico não estivesse preparado para reconhecer tal descoberta sobre as leis da hereditariedade.
Parecia que o foco das ciências naturais da época estava no A Origem das Espécies, publicação, essa, sim, que revolucionou o mundo em 1859. Contemporâneos, Charles Darwin e Gregor Mendel nunca se conheceram pessoalmente, apesar de terem tido perguntas científicas semelhantes, como a transmissão da hereditariedade e como se originam novas espécies. Mas, enquanto Darwin abordou a questão através da ideia da seleção natural de pequenas variações herdadas, que afetam a habilidade de um organismo de competir por recursos escassos na natureza, Mendel foi mais empírico, polinizando vegetais e medindo precisamente cada tipo diferente de híbridos e sua progênie – filiação –, promovendo uma argumentação intelectual que gerasse menos especulações possíveis. Neste ponto, a abordagem do monge botânico foi indistinguível da ciência moderna, ao passo que a do naturalista britânico foi mais lógica e teórica, amplamente aceita, embora não fornecesse respostas sobre o mistério crucial da transmissão da vida, isto é, como os organismos se reproduziam, e como as características eram herdadas de uma geração para a outra.
Enquanto que para Darwin, a transmissão ocorria por “gêmulas”, lançadas de várias partes do corpo para o sangue, que se concentrariam nas células germinativas, diluindo-se na próxima geração, conhecida por teoria da pangênese, para Mendel, os caracteres hereditários eram condicionados por fatores – ele usava o termo “elemento”, equivalente ao que hoje chamamos de gene – que se segregavam, integralmente, por várias gerações. Portanto, o trabalho de um complementou o do outro.
Parece que Mendel teria lido A Origem das Espécies e meditado sobre algumas perguntas de Darwin, como, por exemplo, a que questiona “por que certas características dos avós ou de antepassados mais distantes reaparecem num indivíduo?” O contrário parece que não ocorreu, mas, certamente, Darwin teria tomado conhecimento dos experimentos do monge austríaco, porém, talvez, não tivesse a mesma obsessão do religioso com os números, nem a visão de uma mente focada, de que tais cálculos poderiam revelar leis da natureza tão universais. Apesar dele nunca ter lido o artigo científico de Mendel, Carl von Nägeli, ilustre botânico e professor universitário, trocara várias cartas com o modesto sacerdote, e igualmente não compreendera seus experimentos, e até duvidara dos mesmos, chegando a ignorá-los completamente no seu mais famoso livro com mais de 800 páginas, publicado em 1884.
O trabalho de Mendel, portanto, não foi disseminado no mundo científico, pois era muito radical e abstrato para que seus pares o valorizassem. Além disso, não se sabia na época da existência dos cromossomos como componentes da hereditariedade, dificultando ainda mais a materialização das suas ideias. Consequentemente, todo o seu esforço de oito anos de experiências nunca fora reconhecido em vida. Apesar disso, Mendel continuava a trabalhar com o mesmo entusiasmo, estudando outras espécies vegetais, além de abelhas e meteorologia. Consta que certa vez ele teria afirmado, diante da frieza e indiferença dos cientistas contemporâneos: “Meu dia chegará!”. Ele morreu aos 61 anos e, infelizmente, após a sua morte todas as suas anotações foram queimadas, contribuindo para o seu esquecimento.
Demoraram-se 35 anos desde a publicação original de seu trabalho para que as leis de Mendel fossem “redescobertas” por três cientistas: Hugo de Vries, Karl Correns e Erich von Tschermark. Aplicando as mesmas experiências com hibridação de plantas, os botânicos chegaram às mesmas conclusões que o abade, em relação à proporção de dominantes, recessivos e à segregação independente dos caracteres das plantas (cor verde ou amarela, aspecto liso ou rugoso etc.).
Segundo artigo de autoria de Kim Nasmyth, da Universidade de Oxford, Reino Unido, publicado na célebre revista Nature Reviews Genetics, em 20 de maio de 2022, o trabalho de Gregor Mendel revolucionou a Biologia de tal maneira, que poderíamos considerá-lo como um gênio, e, o seu trabalho, como quase um milagre.
A maioria das descobertas científicas mais importantes, sejam em Física ou Biologia, teriam sido feitas logo em seguida, caso o descobridor original não tivesse existido – o que se conhece por teste de subtração. Ainda, segundo o autor, isso certamente se aplicaria à descoberta da estrutura do DNA, feita por Watson e Crick. Supostamente, o químico norte-americano Linus Pauling a teria descoberto, caso os estudos de Rosalind Franklin não tivessem respaldado a famosa dupla-hélice. Sabendo-se que Mendel fizera suas descobertas quase quatro décadas antes de qualquer outro ser humano, isso o coloca como um exemplo único na história da ciência.
Segundo o livro biográfico sobre o monge escrito por um dos maiores geneticistas brasileiros, Newton Freire-Maia, ex-professor da Universidade Federal do Paraná, Mendel legou à humanidade uma das maiores descobertas de toda a história da ciência e não havia, na época, uma única pessoa sequer que a compreendesse ao ponto de lhe dar o justo valor. Mendel é por isso um dos mais belos e tristes exemplos de um homem que andou na frente de seu tempo. Foi um gênio que não tinha condições de se tornar um figurão da ciência: era sacerdote, tinha a publicação de um único trabalho bom e trabalhava como professor substituto de escola secundária.
Que o seu exemplo de vida e abnegação à fé e à ciência experimental seja uma inspiração para a nova geração de cientistas, duzentos anos depois de seu nascimento, para que acreditem em si mesmos ao buscarem mais perguntas do que explicações, aliando o poder da observação ao da imaginação.
Israel Gomy é médico especialista em Genética Médica, mestre em Ciências Médicas pela USP-Ribeirão Preto, doutor em Oncologia pela Fundação Antônio Prudente, e pós-doutor pela Harvard Medical School. É autor do livro Uma Odisseia Genealógica.
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