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Opinião do dia 1

Heróis anônimos

Temos, ao contrário, entre nós, duas tra­­di­­­­ções menos nobres: a de depender do Es­­ta­­­do para tudo ou quase tudo e a da in­­­diferença, pois já que o Estado deve pro­­­ver, por que devo me preocupar?

Em todos os episódios dramáticos, como as enchentes da região serrana do Rio de Janeiro, aflora imediatamente na população um sentimento coletivo de comiseração, de solidariedade, de desapego pelas próprias conveniências e de amor ao próximo, como se a tragédia fosse sempre um acontecimento coletivo, indivisível e inseparável. Essa nobreza de sentimento é, certamente, a única coisa bonita que se pode vislumbrar em um cenário de destruição e morte.

Mas, ao mesmo tempo em que vemos populares arriscando a própria vida para tentar salvar a de estranhos e desconhecidos, famílias se mobilizando para abrigar vizinhos sem teto, gente que já não tem muita coisa repartindo o pouco que tem, assistimos também a um espetáculo de omissão e de desinteresse por parte de muita gente.

Estou fora do país há alguns dias e, portanto, posso cometer uma injustiça involuntária, mas, vendo as imagens da tragédia da região serrana do Rio, notei que todos os poucos helicópteros que ajudavam no resgate e procuravam chegar aos locais em que centenas de pessoas estavam ilhadas pertenciam ao poder público, aos bombeiros, à polícia, aos Fuzileiros Navais, à Aeronáutica. E onde estavam as centenas de helicópteros que pertencem aos bancos, às empresas privadas, aos megamilionários, que são usados para livrar o beautiful people dos congestionamentos de trânsito ou da violência das ruas ou levá-los para o paraíso de Angra ou do litoral paulista?

Vi na tevê um jogador estrangeiro, o Petkovic, levando gêneros e remédios para os desabrigados, mas vi também o nosso brasileiríssimo Ronaldinho Gaúcho, que chega para ganhar um milhão de dólares por mês, apenas balbuciar algumas palavras de solidariedade, quando possivelmente poderia doar, sem esforço, um dia de seu salário no Flamengo com resultados bem mais palpáveis, além de dar o exemplo. Muitas empresas que estão fazendo arrecadação de roupas e alimentos poderiam aperfeiçoar esse esforço e juntar o seu próprio bolso ao dos clientes: para cada um que os clientes doassem, a empresa doaria dois ou três.

É claro que há muita solidariedade anônima, mais admirável do que a ostensiva, e talvez esse seja o caso das omissões que imaginei existir. Fervorosos seguidores do Sermão da Montanha, talvez sejam pessoas e empresas que, quando dão algo com a mão direita, não deixam que a mão esquerda saiba. Afinal, quem sou eu para dar lições de solidariedade ou para puxar a orelha de quem quer que seja. Mas confesso que um dos traços que mais invejo em algumas sociedades é a extensão e a profundidade desse sentimento de generosidade coletiva, de compartilhamento de problemas, do trabalho voluntário e anônimo; na língua inglesa, a expressão grass roots denomina exatamente isso. O grass root, a raiz da grama, simboliza aquilo que está invisível sob a beleza dos gramados, mas que é o único responsável pela sua vitalidade.

Temos, ao contrário, entre nós, duas tradições menos nobres: a de depender do Estado para tudo ou quase tudo e a da indiferença, pois já que o Estado deve prover, por que devo me preocupar? Da primeira, vamos nos livrando lenta e penosamente na medida em que nos convencemos de que o Estado de nossos dias já não é o Todo Poderoso de outras eras e que aqueles que esperam algo dele devem arranjar uma poltrona bem confortável e esperar sentados. Da segunda, nos livraremos quando nos lembrarmos de que as tragédias são democráticas e atingem a qualquer um indiferentemente. O mesmo deslizamento de um morro que soterrou pobres famílias que não tinham um lugar mais decente para morar soterrou também a família inteira de um alto executivo do Banco Icatu. Nos dois casos, o luto, a inconformidade e a dor são exatamente os mesmos.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR.

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