A questão do Enem sobre os santos como “aliados da Igreja para atrair novos devotos” no século 17 suscita certa reflexão sobre a história e sua interpretação. Se considerarmos que, filosoficamente, a história é fruto da liberdade humana que edifica seu tempo com ações que terminam por gerar necessariamente consequências em seu entorno em maior ou menor escala, cabe aos historiadores procurar transmitir da forma mais fidedigna possível a projeção dessas ações através de uma análise dos fatos transparente e despojada de seu próprio enfoque ideológico. Para tal, necessita conhecer conceitos, recorrer a variadas fontes, aprofundar no contexto, refletir para poder, posteriormente, ofertar com o máximo rigor a verdade objetiva do conteúdo a ser ensinado e não sua apreciação subjetiva.
Neste ano, em geral, têm chamado atenção as questões de vestibular que dão continuidade à tradição que vamos instaurando no país no sentido de manipular a educação de forma ideológica. Dessa maneira, introduzem-se as mentes ainda por se formar em uma visão bastante parcial – e, podemos dizer, superficial – da realidade, já que a ideologia trabalha especialmente com rótulos e slogans, que impedem um conhecimento mais profundo e verdadeiro da realidade em questão, incapacitando-a de suscitar, através da reflexão pessoal, conclusões benéficas sobre a experiência que a história pode oferecer como luz para melhorar nossa própria conjuntura.
As releituras históricas, radicais em seus dois extremos, acabam sempre em uma visão reducionista
Nesse sentido, analisando a questão, percebe-se que a semântica é conduzida a partir de uma deficiência conceitual: o que se entende por santidade e poder clerical, desembocando em uma resposta que conecta a cristianização da população com a manutenção da escravidão. É interessante pensar que as releituras históricas, radicais em seus dois extremos, acabam sempre em uma visão reducionista, normalmente vinculada ao Homo economicus e seus interesses, sejam estes individuais ou coletivos, o que impede a penetração em uma compreensão mais transcendente.
Vem-me à cabeça a grande obra da historiadora francesa Regine Pernoud. Idade Média, o que não nos contaram destaca as luzes da idade que muitos classificam como “das trevas”, como, por exemplo, a criação das universidades. Pensando nos esforços de cristianização dos indígenas; na dedicação de tantos que deram suas vidas por essa causa, abandonando pátria e família para sobreviver em lugares inóspitos e arriscados; na civilização que nos serviu de base; na respeitosa maneira de “inculturar” que a Igreja vai desenvolvendo até hoje; em sua luta ferrenha contra a escravidão etc., parece-me injusto iniciar estudantes de forma parcial em seus primeiros passos rumo a sua configuração profissional.
Ainda que alguns indivíduos possam falhar em objetivos corporativos – como atesta o próprio princípio da Igreja com a figura de um traidor –, não se pode estender intenções ou conclusões a toda uma organização a partir de uma hermenêutica partidária. Para que cumpra efetivamente a sua função, o historiador tem de ser minucioso e correto em sua apreciação: um cristal que deixa transparecer os fatos em sua globalidade para que a história também possa realizar o seu papel de catalisadora de reflexões, capazes, por sua vez, de ensejar ações positivas. Se a realidade é tergiversada, acaba por produzir também efeitos inadequados, já que a educação não é só informativa, mas formativa e performativa.
À universidade pode-se aplicar as palavras de Guimarães Rosa: “vivendo se aprende, mas o que se aprende mais é só a fazer maiores perguntas”, chegando às perguntas mais radicais, constitutivas da natureza humana, como explica o professor de Filosofia do Direito Luis Fernando Barzotto. Porém, a base para as respostas não pode ser sofismática. A história deve ser transmitida de forma justa, mantendo a vontade firme de atribuir a cada tempo e instituição o que lhe é realmente devido.
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