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Homem, um ser religioso
| Foto: Josh Applegate/Unsplash

A ciência, a filosofia, a arte e a religião são as grandes atividades pelas quais a genialidade e a criatividade humanas melhor se expressaram, produzindo um tesouro de obras imponentes e admiráveis. As conquistas da filosofia e da ciência permitiram à humanidade investigar o mundo em várias dimensões, descobrir as complexas e intrincadas estruturas que o constituem, além de desenvolver tecnologias cada vez mais avançadas para submeter a realidade ao seu domínio.

As criações artísticas (as belas-artes, a literatura e a música) afagam a vista, os ouvidos, a mente e o coração do homem. E a religião não foi menos fecunda em suas obras. Até o século XIX, a religião foi a força motriz da cultura. Zelou pela tradição, assegurou o legado greco-romano, preservou a educação, a lei moral e o instinto civilizatório. Não se pode compreender as estruturas íntimas de uma sociedade e suas manifestações culturais se não se conhece bem seus postulados religiosos. A questão religiosa está no limiar de todas as grandes literaturas e filosofias da história.

Qualquer postura que ignore o fenômeno religioso pode ser comparada à conhecida passagem literária de Irmãos Karamazov, de Dostoiévski: Se Deus não existe, então tudo é permitido

Evelyn Waugh, romancista inglês do século XX, é um dos escritores que têm uma visão sobrenatural da realidade, de cunho metafísico. Reclamando da indignação de Edmund Wilson com a presença de Deus em Brideshead Revisited, ele diz: “Eu acredito que você só pode deixar Deus de fora se criar personagens que são pura abstração. (...) O fracasso dos romancistas modernos desde e incluindo James Joyce vem da presunção e da arrogância. Eles não estão satisfeitos com as figuras artificiais que até agora passaram graciosamente por homens e mulheres. Eles tentam representar toda a mente e a alma humanas, ao mesmo tempo omitindo sua característica determinante a de serem criaturas de Deus com uma finalidade definida. Assim, em meus livros futuros haverá duas coisas para torná-los impopulares: uma preocupação com estilo e a tentativa de representar o homem de maneira mais completa, o que, para mim, significa apenas uma coisa: o homem em sua relação com Deus” (in Garcia, Rodrigo Duarte; Uma pequena experiência na arte do romance: Tolstói, Guerra e Paz).

Mesmo que a religião, nos dias de hoje, passe, em muitos campos internos, por um período de crise, isso não constitui um argumento plausível contra o peso específico da dimensão religiosa e a relevância histórica e cultural do fenômeno religioso: ele se impõe como uma constante do ser humano, mesmo que não seja cultivada por todos os membros de nossa espécie. Como já dizia Cícero em seus famosos discursos, o homem é naturalmente religioso, porque a realidade que o circunda, com sua força, com seu fascínio e com seu terror, sugere a ele a existência de um Ser superior.

Tal fenômeno, no nível empírico, foi bem captado no Panorama do Ensino Religioso Brasil 2023, relatório desenvolvido pelo Observatório da Religião na Escola (ORE) da Fundação SM, cujo intuito foi marcar um avanço na compreensão abrangente do ensino religioso no país e contemplar a diversidade cultural e religiosa de nosso povo.

Os resultados do relatório revelam a importância do conhecimento religioso na formação dos estudantes e no processo pedagógico como um todo. O estudo demonstra como a disciplina escolar do ensino religioso contribui para a construção da identidade pessoal dos estudantes, promovendo valores essenciais em sociedade como assertividade, empatia, alteridade, diálogo e respeito.

Mas não é só. O ensino religioso faz com que os deveres civis sejam melhor compreendidos na perspectiva da justiça e do bem comum e, assim, transformam-se em condições fundamentais para a formação de uma sociedade vista por seus membros como uma casa comum e não como um conjunto de muquifos atomizados. Também impressiona a percepção pedagógica da disciplina pelos próprios alunos em termos de florescimento individual global. Alguns indicadores dessa conclusão são bem incisivos:

• 67,3% dos(as) estudantes consideram que a formação religiosa os ajuda a serem mais responsáveis;

• 62,1% dos(as) estudantes avaliam que a formação religiosa os ajuda a serem mais ecológicos no cuidado com o planeta;

• 71,2% dos(as) estudantes acreditam que o ensino religioso os ajuda a ser melhores cidadãos na vida social e política;

• 73,4% dos(as) estudantes reconhecem que o ensino das religiões os ajuda a ser melhores pessoas;

• 71,5% dos(as) estudantes consideram que o ensino das religiões os ajuda a ser mais respeitosos com as outras pessoas;

• 68,4% dos(as) estudantes consideram que a formação religiosa os ajuda a diferenciar o bem do mal.

No que tange à definição religiosa, dois em cada três estudantes se declararam católicos (66,3%), evangélicos (14,8%), de outras religiões (10,2%) e apenas 1,7% são ateus, sendo que 6,6% se apresentaram como agnósticos. A conclusão dessa resposta é clara: 91% dos estudantes brasileiros afirmam que acreditam em Deus, levando em consideração a diversidade de crenças e religiões, embora haja uma clara predominância de católicos.

Qualquer postura que ignore o fenômeno religioso pode ser comparada à conhecida passagem literária de Irmãos Karamazov, de Dostoiévski: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”. Isto é, se Deus não existe, então, eu sou deus. Se Deus não existe, então tudo é lícito, ou seja, se Deus não existe, a realidade empírica não teria nenhum significado último, salvo se entendida como uma constante e perpétua obra de construção de sentido a que o homem estaria condenado, uma espécie de itinerário de Sísifo de sua sobrevivência temporal.

Assim, compreende-se perfeitamente o porquê de Sartre fazer do homem o artífice trágico de sua essência, na medida em que está consciente do impasse, à luz dos postulados existencialistas, a que está destinado a ser: se a existência precede à essência, isto é, se o homem carece de qualquer lastro metafísico, só resta ao homem criar uma essência para si mesmo. Não é à toa que, coerentemente, nosso filósofo existencialista, depois de virar a mesa da relação entre essência e existência do homem, impôs-lhe o fardo titânico de ser Deus, isto é, ser em si e para si.

Todavia, não é preciso chegar a esse ponto. Deus está no meio de nós e sua percepção foi amplamente captada pelo relatório já citado que, ao fim, não só é um importante termômetro para aprimorar ainda mais as habilidades e competências específicas do ensino religioso e demonstrar seus efeitos positivos para seus alunos na vida em sociedade, mas também para recordar que o homem, desde sempre, sendo aluno ou não mais, é um ser aberto ao transcendente.

André Gonçalves Fernandes, Post Ph.D., é juiz de direito, escritor, professor de filosofia da Academia Atlântico e de filosofia do direito do Instituto Ives Gandra, pesquisador em filosofia da educação pela Unicamp e membro da Academia Campinense de Letras.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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