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Em decisão unânime ocorrida em embargos de declaração de processo envolvendo a União e o Distrito Federal, o Supremo Tribunal Federal, em 18 de fevereiro, surpreendeu os meios jurídicos ao reduzir honorários de sucumbência, inicialmente fixados em 1% do valor da causa (o que resultaria em R$ 7,4 milhões), para módicos R$ 10 mil, estes fixados por equidade (segundo o artigo 85, parágrafo oitavo, do Código de Processo Civil), considerando que o processo não exigiu trabalho excessivo, somente questões de direito, e que 1% sobre o vultoso valor da causa seria exorbitante.
A decisão indica expressivamente que a fixação de honorários de sucumbência por equidade também se aplica em casos de elevado valor envolvendo entes do poder público – portanto, verba pública –, em que a aplicação porcentual sobre o valor da causa ou condenação possa resultar exorbitância excessiva e desproporcional. A decisão talvez possa servir de parâmetro também para processos entre particulares.
Pouco menos de um mês depois, em 16 de março, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de 7 a 5, decidiu pela impossibilidade de fixação de honorários de sucumbência por equidade (redução) em causas de valor elevado, decisão oposta à do Supremo e muito mais favorável aos advogados, ressalvando apenas aplicação dos porcentuais menores e escalonados (1% a 20%) em caso de aplicação contra a Fazenda Pública, conforme previsto no parágrafo terceiro do artigo 85 do CPC, calculado sobre a condenação, ou proveito econômico, ou valor atualizado da causa, assim divergindo frontalmente da decisão da suprema corte acima resumida.
O dissenso abre oportuno espaço para relembrar as transformações que o instituto dos honorários de sucumbência sofreu nas últimas décadas, com forte impacto no devido processo legal substantivo. O tema carrega interesse dos advogados e procuradores, categorias indispensáveis ao Estado Democrático de Direito, ficando desde já destacada a inexistência de qualquer intenção de desrespeito ou desconsideração a essas honrosas profissões, sendo este singelo artigo apenas um resgate histórico para melhor compreensão do assunto e debates construtivos.
Quem vai ao Judiciário e gasta para realizar seu direito, pagando seu advogado, taxas judiciais e despesas do processo, por óbvio, além do direito reconhecido, deve também ser ressarcido dos valores que pagou para movimentar o processo. Por essa razão lógica, os honorários de sucumbência eram uma verba de natureza ressarcitória, assim como diária de testemunha, custas adiantadas, honorários de perito e outras despesas, a serem pagas pelo vencido (o sucumbente) ao vencedor do processo, e assim estava expressamente determinado no Código de Processo Civil de 1973, artigo 20 (destaque meu): “A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios”.
Com todo respeito aos movimentos dos advogados e procuradores que conseguiram melhorar seus rendimentos pelos meios republicanos, aprovando leis no parlamento, uma ferida foi aberta no devido processo legal substantivo
O Estatuto da OAB, em 1994, tomou os honorários de sucumbência dos jurisdicionados, declarando expressamente, entre outras normas no mesmo sentido, que os honorários de sucumbência pertencem aos advogados, assim mudando a natureza da verba, de ressarcitória (da parte) para retributiva (para o advogado). O conflito chegou ao Supremo e permitiu considerações respeitáveis e bons debates, mas sem decisão propriamente sobre o mérito.
Depois veio o CPC de 2015, completando a transferência, detalhando, no poderoso artigo 85 (que tem 19 parágrafos e vários incisos), um novo formato progressivo e mais vantajoso para cálculo da verba (assunto de que tratei à época), virando a história do instituto no processo civil, confirmando a titularidade da verba para o advogado e a mudança da natureza ressarcitória para retributiva em favor do advogado.
Em 2016, na esteira do novo CPC, foi sancionada a Lei 13.327, que transferiu (artigos 29 a 36) para os advogados públicos da União as seguintes verbas: 1. os honorários de sucumbência da União; 2. até 75% da taxa de 20% da dívida ativa, criada pelo Decreto-Lei 1.025/69; e 3. a taxa de 20% criada pelo parágrafo 1.º do artigo 37-A da Lei 10.522/02. O tema foi objeto de outro combatido comentário meu. A nova regra tem sido estendida aos procuradores dos demais entes públicos.
Em 2017, a Lei 13.467 instituiu os honorários de sucumbência no processo trabalhista em favor do advogado da parte vencedora. Interessante que no projeto original (e sua justificativa, de 2003) constava que os honorários seriam pagos à parte vencedora do processo, da mesma forma prevista na histórica regra do CPC de 1973, mas foi modificado por emenda transferindo a verba para o advogado. O trabalhador, que muitas vezes paga até 30% de seus direitos trabalhistas ao seu advogado, fica sem ressarcimento. Num exemplo hipotético ótimo, o advogado pode ficar com valor correspondente a até 50% da causa ganha, 30% de honorários contratuais e mais 20% de honorários de sucumbência.
Com todo respeito aos movimentos dos advogados e procuradores que conseguiram melhorar seus rendimentos pelos meios republicanos, aprovando leis no parlamento, uma ferida foi aberta no devido processo legal substantivo. É muito ridículo que o instrumento utilizado para fazer justiça, o processo judicial, seja defeituoso, injusto para o jurisdicionado, não permitindo que o cidadão, obrigado a ir ao Judiciário para realizar seu direito, seja ressarcido da sua principal despesa, os honorários pagos ao seu advogado. É a tragédia dos jurisdicionados, tecnicamente dependentes, que, em vez de serem protegidos, foram preteridos por quem deveria protegê-los.
A Constituição Federal determina, como objetivo fundamental da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. O Código Civil estabelece que o devedor pague ao credor honorários advocatícios a que deu causa (artigos 389 e 395). O nosso sistema judicial, excluindo a possibilidade de o vencedor do processo ser razoavelmente ressarcido do valor gasto com seu advogado no processo, desatende a Constituição, o Código Civil e nega justiça óbvia.
A amplitude nacional dessa deformidade, ocorrendo continuamente em milhões de processos e prejudicando milhares de pessoas, afeta a própria imagem do Judiciário, o poder constituído para fazer justiça. Os constitucionalistas, processualistas e operadores do direito precisam debater esse tema e propor solução que resgate a dignidade do processo judicial, fazendo com que seja efetivamente instrumento de realização integral do direito, em prol da construção de uma sociedade mais justa.
José Jácomo Gimenes é juiz federal e professor aposentado do Departamento de Direito Privado e Processual da Universidade Estadual de Maringá.