Embora mais de 320 mil norte-americanos tenham participado da Guerra da Coreia – dos quais mais de 33 mil morreram em combate –, ela ainda é a nossa Guerra Esquecida, considerada um fracasso na consciência histórica nacional.
Talvez porque o conflito tenha terminado sem solução. Pouca coisa mudou no avanço das linhas de frente, ao longo do Paralelo 38. “Morremos por um impasse”, dizem muitas vezes os veteranos, e há algo profundamente insatisfatório nessa narrativa. Nós, norte-americanos, compreendemos a vitória militar, e tivemos de aprender o que é a perda, mas fica meio difícil aceitar um empate.
Outra razão para a nossa amnésia pode estar no fato de termos aprendido na escola que a Coreia foi um simples “conflito”, uma “ação policial” da ONU. Que fique bem claro: foi guerra, sim, e produziu algumas das batalhas mais escabrosas e dramáticas de nossa história.
Os homens que sangraram e morreram na Coreia agora estão sendo reconhecidos. Eles, sem dúvida, não se esqueceram da guerra, e têm todo o direito de sentir orgulho de suas conquistas. Afinal, impediram um ato explícito de agressão comunista e se opuseram a três ditadores malévolos – Stalin, Mao e Kim –, além de ajudar a Coreia do Sul a decolar como democracia. Muitos, aliás, parecem perplexos pelo fato de que, tirando as reprises eternas de M.A.S.H, suas façanhas têm tão pouco destaque na cultura nacional.
Nós, norte-americanos, compreendemos a vitória militar, e tivemos de aprender o que é a perda, mas fica meio difícil aceitar um empate
Há questão de alguns meses, tive a excelente oportunidade de visitar a Coreia do Sul com um grupo de ex-combatentes norte-americanos, viagem que fazia parte de um programa generoso, encabeçado pelo governo daquele país, para agradecer formalmente a esses homens, hoje idosos e frágeis, que ajudaram a salvar a minúscula nação da destruição e colocá-la no caminho onde se encontra hoje – uma sociedade moderna, tecnologicamente avançada, nossa aliada fiel e 11.ª maior economia mundial.
E o governo estendeu o tapete vermelho para esses guerreiros: voos de graça, hotel cinco estrelas, ônibus com ar-condicionado. Na Zona Desmilitarizada, para além do arame farpado, pudemos vislumbrar o tipo de Estado totalitário em que a Coreia do Sul poderia ter se transformado. Ficamos deslumbrados com a metrópole em que se transformou Seul – e que, da última vez que foi vista por esses homens, não passava de escombros e ruínas. Nosso trem-bala deslizou pelo sem-fim de arrozais destruídos completamente, vítimas da brutalidade da guerra.
Tudo isso porque as autoridades dali queriam que os veteranos entendessem a extensão da gratidão geral pelo sacrifício que fizeram há tantos anos. Os ex-combatentes ficaram extremamente emocionados e felizes em saber que, no fim das contas, não foram esquecidos.
Por outro lado, esses homens imperturbáveis, mesmo tendo passado por tanta coisa, já aceitaram o fato de que suas conquistas sempre serão coadjuvantes em relação aos seus tios, primos e irmãos mais velhos – conhecidos como a “Geração de Ouro” – que participaram da Segunda Guerra Mundial.
Carlos Ramalhete: Estados Unidos e Coreia do Norte (publicado em 26 de outubro de 2017)
Recentemente, tive a oportunidade de conhecer um deles. Seu nome é Franklin Chapman, mais conhecido como Jack; chefe de segurança universitária aposentado, é cherokee e vive em Santa Fé. Em dezembro de 1950, em uma noite gélida, no meio das florestas das encostas próximas à represa de Chosin, na Coreia do Norte, seu destacamento, parte da 7.ª Divisão de Infantaria, foi vítima de um ataque impiedoso por parte dos chineses. Ali perto, o norte-americano que operava um fuzil de 75 milímetros montado na traseira de um caminhão perdeu a compostura e abandonou o posto, em pânico.
Um capitão chegou esbaforido entre os homens, exigindo que um voluntário se prontificasse para assumir a arma. Chapman, um garoto inexperiente de 17 anos originário de Oklahoma, levantou a mão. Até hoje, ele não sabe por quê. “Talvez fosse coragem. Ou burrice”, admitiu para mim.
Ao subir no veículo, Chapman conseguiu vislumbrar os chineses fazendo pressão, tocando cornetas, batendo nos tambores, o som das balas abafado pela neve. Ele girou o armamento e começou a atirar.
Tendo em mãos uma arma tão letal, ele sabia que era uma questão de tempo até que os chineses o localizassem. E acertaram seu braço esquerdo, depois a perna direita e o braço direito. Um médico cuidou de seus ferimentos e lá foi ele para cima do caminhão de novo. Foi atingido no quadril e recebeu inúmeros estilhaços. Tinha acabado de recarregar a arma quando uma bala o atingiu na testa e se alojou no crânio, arrancando-o de sua posição e deixando-o inconsciente.
Os chineses acabaram levando a melhor sobre a sua unidade, dizimando-a. O confronto, conhecido como a Batalha do Vale Hellfire, estava encerrada.
Horas depois, Chapman acordou e se viu ao lado de outros dez prisioneiros, jogado no chão sujo de uma casa abandonada. Guardas chineses o forçaram a marchar por trilhas nas montanhas durante 19 dias, até alcançarem um local chamado Kanggye, perto da fronteira com a Manchúria. Chapman ficou ali quase três anos.
Leia também: A “diplomacia do batom” da Coreia do Norte (artigo de Suki Kim, publicado em 11 de fevereiro de 2018)
Quando finalmente voltou para os Estados Unidos, não houve desfiles nem comemorações para recebê-lo. Não foi condecorado por sua coragem extraordinária; seu heroísmo não foi registrado por nenhum jornal ou revista. Discretamente, foi retomando a vida. Entrou para a Força Aérea, onde serviu quase 16 anos. Quando começou a ter dores de cabeça paralisantes, um médico teve de retirar a bala que Chapman trazia no crânio, da qual fez relíquia.
Hoje, aos 85 anos, praticamente não sai de casa. Sofre de neuropatia por causa do congelamento dos pés, doença comum entre os veteranos da Guerra da Coreia. Seu corpo é uma miscelânea de dores decorrentes dos ferimentos de guerra e do tempo que passou como prisioneiro. Sofre de transtorno do estresse pós-traumático, embora durante quase toda a sua vida o problema não tenha tido nem a dignidade de um nome. De certa forma, parece adequado para um veterano da Guerra da Coreia sofrer de grave falta de memória. Às vezes, não consegue reconhecer a própria filha, mas as lembranças de suas experiências de guerra continuam vívidas.
Homens como Jack Chapman estão, aos poucos, saindo de cena. São discretos, não reclamam, tendo atendido ao chamado da pátria e lutado por um princípio, há muito tempo, longe de casa, em uma guerra que não foi “oficialmente” uma guerra – e que, curiosamente, se transformou em uma conta esquecida no banco da nossa memória pública. Soldados humildes e confiáveis como Jack Chapman são a razão por que, ao comemorar o Dia dos Veteranos, devemos fazer da Guerra da Coreia a Guerra do Reconhecimento.