Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Opinião do dia 2

Horror ao vácuo

Como a política tem horror ao vá­­cuo, as tentativas de ocupá-lo po­­dem provocar novo ciclo de con­­flitos na AL

O eclipse sem precedentes dos Estados Unidos na América La­­tina criou vácuo de poder cuja expressão mais notável é o im­­passe hondurenho. Como a política tem horror ao vácuo, as tentativas de ocupá-lo podem provocar novo ciclo de conflitos na região.

Dois séculos atrás, os americanos inauguravam sua política externa com o discurso de adeus de Washington e a doutrina de Monroe. O primeiro era o desinteresse pelo resto do mundo; a segunda, a reserva da exclusividade nas Américas. Hoje, é o contrário: ativismo em toda parte, até no remoto Afeganistão, menos na vizinhança imediata.

Desde a Guerra Fria, passando pelo Vietnã e agora pelo Iraque e pelo Afe­­ganistão, a percepção de que as ameaças estavam alhures conduziu à atitude de "benign neglect" de Nixon e sucessores. Com Obama, chegou-se ao ponto baixo de completar nove meses sem conseguir aprovar o secretário para o hemisfério e o embaixador no Brasil!

Ambos são reféns de senadores republicanos que apoiam o governo de fato de Honduras. A primeira reunião do grupo levou um dos presentes a declarar: "Ja­­mais em minha carreira tinha visto oito senadores numa sala para falar da América Latina".

A condescendência do comentário lembra a frase do antigo redator – chefe do New York Times, James Reston: "Nós, americanos, estamos prontos a fazer tudo pela América Latina, exceto ler sobre a América Latina".

Com o tempo, a indiferença e a decepção tornaram-se recíprocas. A agenda latino-americana dos dois partidos de Washington se reduziu ao narcotráfico, aos imigrantes e aos acordos comerciais para garantir aos EUA direitos preferenciais na região. Para os latinos, ao menos os exportadores de commodities (a maioria), a emergência da China lhes trouxe grau apreciável de autonomia e diversificação em relação à anterior dependência dos EUA.

A crise financeira, o Afeganistão, as prioridades domésticas de Obama fizeram o resto. Nesse quadro, o novo go­­verno achou que não valia a pena gastar nem o mínimo de capital político necessário para repelir política desmoralizada como a do bloqueio de Cuba. A paralisia decorrente da ambiguidade americana em Honduras, as confusões nascidas da falta de informação sobre o acordo militar com a Colômbia produzem penosa sensação de diplomacia à deriva.

Após a breve aparição na reunião da OEA em Trinidad, a secretária de Estado, Hilary Clinton, e o presidente Obama não voltaram a se ocupar da América Latina, única região onde Washington ainda não dispõe de equipe instalada. O problema é que ninguém tem poder para ocupar esse espaço, nem a OEA ou Chá­­vez, nem o presidente da Costa Rica ou a inexperiente diplomacia brasileira na América Central.

Nascidas da profunda e secular simbiose entre os EUA e a América Latina, muitas questões (imigração, crime organizado, comércio) só podem ser resolvidas mediante colaboração esclarecida como tentou ser a fugaz Aliança para o Progresso de Kennedy quase 50 anos atrás!

A ausência de tal política perpetua a influência deletéria de lobistas e grupos retrógrados. Agrava, ao mesmo tempo, vácuo de poder propício à proliferação de episódios mais preocupantes que o de Honduras. Ao cultivar a ilusão de que as ameaças à segurança se concentram apenas no outro lado do mundo, Obama corre o risco de descobrir que problemas muito mais próximos podem explodir em sua cara.

Rubens Ricupero, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

Use este espaço apenas para a comunicação de erros