O mesmo século XX que foi pautado pela ciência e pela razão, assim como pelo progresso que proclamou mundialmente os direitos humanos e a democracia como caminhos da construção de uma sociedade mais justa e fraterna, foi o século que conheceu um dos mais extensivos casos de massacres humanos da contemporaneidade, que ficou conhecido, mesmo que tardiamente, como Holodomor, que na tradução livre significa “morte pela fome”, causado pelo governo stalinista entre 1932 e 1933, ocasionando a aniquilação de quase seis milhões de pessoas, um dos maiores genocídios de nossa história recente.
O Holodomor pode ser observado como um dos mais graves e violentos processos de massacre em massa ocorridos durante o século XX. É claro que em um século de terror e visceralidade como realmente foi este período, muitos outros eventos podem ser lembrados, dentre eles o que mais se destaca é sem dúvidas o Holocausto promovido sob a égide do partido nazista alemão. Mais ou menos conhecidos, no entanto, todos levam a marca da crueldade e do desprezo humano pela vida alheia, todos fizeram suas vítimas, e produziram seus algozes, e como não seria diferente, ainda são objetos de disputa, que ultrapassam o campo meramente político, para se estabelecerem na memória das pessoas, e na construção das identidades e imaginários nacionais.
É notório que práticas e resquícios autoritários ainda subsistem em nossa sociedade. Resíduos da insensatez humana que produziram alguns dos mais mortais episódios de nossa história contemporânea ainda pairam sobre nós.
O passado é um terreno eternamente em conflito. Inúmeros são os exemplos de apropriação e distorção de seus meandros ao serviço do presente, muitas ocorrências são frequentemente relembradas e revisitadas, sempre a serviço de nossas pautas atuais, seja para o bem ou para o mal. O Holodomor não foge a regra; ele é desde sua eclosão ainda na primeira metade do século passado, entre os anos de 1932-1933, envolto em místicas e versões diversas.
Fruto direto das políticas stalinistas implantadas ao longo da URSS no período, que buscava o controle alimentício da produção de excessivos agrícolas por meio da coletivização das fazendas que deveriam abastecer os galpões russos destinados à exportação com a produção agrícola, a situação que tinha atingido grande parte das regiões anexadas se agravou especialmente na Ucrânia, vista como o “celeiro da Europa” e a menina de ouro de Stalin devido tanto as suas históricas ligações com a Rússia, como por conta da alta fertilidade de seus campos que abasteciam boa parte da União Soviética.
Tais práticas que buscavam a coletivização e arrecadação de boa parte do excessivo produzido pelos camponeses ucranianos (em uma sociedade majoritariamente agrária) gerou uma grave crise de fome que teve seu pior momento justamente entre 1932-1933. As estimativas quanto aos números de vítimas são ainda nebulosas, assim como as discussões acerca da Grande Fome se mostram acaloradas. Entre historiadores e estudiosos do tema, elas normalmente giram em torno de 5 a 7 milhões de mortos naqueles anos.
Os efeitos trágicos da coletivização alcançaram números alarmantes. No inverno de 1933, auge de sua aplicação, chegaram a morrer 12 mil pessoas por dia nos campos da Ucrânia. O camponês, que no início da coletivização ainda podia trabalhar, mesmo que precariamente, devido à fome, já não produzia mais em seus campos. Esta situação aumentava a cobrança dos fiscais de campo do governo; a miséria era responsável por sua própria multiplicação
Em meio a esse cenário de fome, em que toda a Ucrânia sofria as consequências de um regime autoritário, o governo não hesitava em continuar com os arrochos nas arrecadações, culminando com uma mortalidade sem precedentes nos últimos séculos. Este ambiente com tantas adversidades, algumas até inimagináveis, revelam-nos histórias ainda mais trágicas e marcantes que remontam a este período.
Na busca pela compreensão da história do Holodomor, o historiador Anderson Prado, em 2018 publicou uma obra com dados e informações de suma importância. Ao trazer para a luz da história relatos de testemunhas da época, ele nos coloca a par de fatos ainda mais impactantes sobre a vida nos campos da Ucrânia no início dos anos 1930. O relato de um jornalista da BBC de Londres, que lá estivera, traz à tona uma prática que ocorria entre os camponeses e que há muito tempo ficara oculta perante a história, por seu teor demasiado traumático. Segundo aquele relato, no cotidiano, não raras eram às vezes em que se praticava o canibalismo entre os camponeses. Tamanho era o desespero por comida que, por muitas vezes, uma mãe preparava a carne de um filho ou do marido que não resistira à fome, para que os demais comessem.
Na época, os fatos ainda eram pouco conhecidos devido ao abafamento das autoridades stalinistas. As atrocidades começaram a ser ventiladas para o mundo de maneira lenta a partir das denúncias de Mikhail Gorbachev sobre os crimes de Stálin durante os anos 1980.
Atualmente, grande parte dos países, especialmente ligados à agenda ocidental, reconhecem o Holodomor como um genocídio legitimamente perpetrado sob o guarda-chuva stalinista, a Ucrânia, em especial, sempre buscou ampliar o conhecimento do mundo a respeito desses crimes. Em anos recentes, o tema vem tomando novos contornos e sendo cada vez mais reconhecido, inclusive no Brasil, através de pesquisas avançadas como a do professor doutor Anderson Prado, pioneiro nos estudos sobre o Holodomor e referência no tema. Esses estudos ajudam na compreensão da necessidade de trazermos à baila discussões sobre o reconhecimento do genocídio, que inclusive, no Brasil nunca foi oficializado.
Assunto envolto em eternas polêmicas e debates acerca de suas causas e natureza, seu estudo é, contudo, fundamental e necessário, tanto para ampliarmos nossa compreensão histórica, bem como para entendermos nosso próprio tempo e evitar a repetição dessas atrocidades.
É notório que práticas e resquícios autoritários ainda subsistem em nossa sociedade, discursos de ódio e formas de violência são cotidianamente veiculadas através de nossas redes sociais, programas de jornal e notícias impressas. Resíduos da insensatez humana que produziram alguns dos mais mortais episódios de nossa história contemporânea ainda pairam sobre nós. Para ampliarmos o debate, para democratizarmos o espaço e celebrarmos nossas diferenças tão fundamentais, devemos conhecer o passado, mas não basta apenas conhecê-lo. É preciso também compreendê-lo, pensando sempre que nosso presente está repleto de passado.
Henrique Schlumberger Vitchmichen é mestre em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e especialista em História, Imprensa e Imigrações Eslavas para o Brasil.
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