Ações higienistas sempre são esperadas e exigidas por boa parte da população. Muitas das pessoas que cobram operações de higienização não estão preocupadas com questões sanitárias ou de segurança, mas estéticas. O mote da gestão do prefeito de São Paulo, João Dória – “Cidade Linda” – evidencia o objetivo da gestão: livrar a cidade das pessoas em situação de rua dos logradouros públicos, sugerindo que, com eles, a cidade é feia.
O mesmo cidadão que esbraveja sobre a “feiura” causada pela população de rua é o que abandona sofás, colchões e outros utensílios diante da sua residência. Certa vez, um senhor reclamou que um rapaz dormia em um sofá na rua em que morava. Na abordagem social, uma vizinha relatou que o jovem estava dormindo lá porque encontrou o sofá deixado pelo morador que era o reclamante. Em uma outra solicitação, uma comerciante reclamava da grande quantidade de lixo deixado em frente a sua loja. O material recolhido eram embalagens de marmitas, sanduíches, pizzas e até mesmo roupas sujas. Tudo deixado por voluntários na noite anterior. Quando conversamos com o senhor que repousou no local, ele alegou que não recolheu o lixo porque foi “enxotado” e não teve tempo de limpar a área. Ele ainda justificou que a limpeza pública faria isso e completou com o seguinte comentário: “já ouvi de várias pessoas que jogavam lixo na rua que elas faziam aquilo porque é preciso manter o emprego do gari”. O leitor já deve ter ouvido frase semelhante em alguma praça de alimentação.
Todos os dias, pessoas em situação de rua são discriminadas, espancadas e assassinadas
Um projeto para transformar vidas
É possível ressignificar a vida das pessoas em situação de rua, dando a elas condições de fazer as suas escolhas
Leia o artigo de Larissa Tissot, presidente da Fundação de Ação Social de Curitiba.É óbvio que a complexidade do tema necessita de debate permanente; ouvir os sujeitos de direitos e as lideranças dos movimentos que atuam na promoção e na defesa dos direitos humanos de pessoas em situação de rua deve ser prioridade. É também necessário e fundamental ouvir os relatos e as demandas dos comerciantes, dos trabalhadores da assistência social, da saúde, da segurança e da limpeza pública. O diálogo coletivo entre poder público e sociedade civil é essencial para combater o ódio, o preconceito, a violência e, principalmente, para a elaboração e implementação de políticas públicas eficientes.
Muito dos avanços vistos em Curitiba nos últimos anos é resultado da escuta qualificada de diversos atores da sociedade. Entre as ações estão a descentralização dos serviços de acolhimento, dando origem a unidades especializadas como o Condomínio Social, a Casa do Vovô, a Casa de Passagem Feminina (que acolhe travestis e transexuais), a Casa de Passagem Indígena, além dos dois Guarda-Pertences, da possibilidade de acolhimento também dos cães e carrinhos de materiais recicláveis, do acesso gratuito a banheiros públicos, da Operação Inverno – que desde 2013 impediu a morte de pessoas em situação de vulnerabilidade –, entre tantas outras estratégias. Antes de serem desativados ou remanejados, esses serviços deveriam ser submetidos à avaliação de todos os atores relacionados, não apenas do populismo.
Pessoas em situação de rua estão presentes em Curitiba e em todas as metrópoles e grandes cidades do mundo, reflexo de desigualdades estruturais históricas. Elas não deixam a nossa cidade feia, e sim evidenciam a distância de classes e a necessidade de novas estratégias de abordagem, acolhimento e condições de igualdade. Todos os dias, pessoas em situação de rua são discriminadas, espancadas e assassinadas, crimes que não raro ficam impunes. Afinal, quem vai brigar pela vida de quem tudo perdeu, de quem não tem alguém para sequer reivindicar o corpo? Esta é a missão de quem defende a vida.
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