Considerando-se que um dos pilares do avanço civilizacional (e da ciência) é não apenas a liberdade de expressão, mas também a discussão pautada não por ideologias e idiossincrasias, mas pela razão, pelos fatos (realidade) e por aquilo que a ciência nos tem efetivamente revelado, julgo necessário assumir publicamente, como acadêmico e defensor da liberdade, um posicionamento diante da questão do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.668, a qual pretende tornar obrigatória a inserção da “ideologia de gênero” nas escolas brasileiras. Tal julgamento, inicialmente agendado para o dia 11 de novembro, foi retirado de pauta pelo presidente do STF, Luiz Fux. Não obstante, embora suspenso, ele possivelmente voltará a ser pautado no futuro, razão pela qual devemos manter o contínuo esclarecimento sobre a irrazoabilidade e sobre os efeitos perniciosos de uma possível aprovação da imposição da ideologia de gênero nas escolas.
Primeiramente, no entanto, gostaria de observar que toda forma de discriminação (e violência) fundada em preconceitos torpes é injustificável e deve estar submetida a penalidades de acordo com o que prescreve o império do direito. Ainda que sejamos passíveis de diferenciação, pois somos únicos (indivíduos) e dotados de diferentes habilidades, aspectos psicológicos etc., somos iguais desde uma perspectiva moral. Portanto, somos dotados daquilo que em filosofia e na tradição cristã se convencionou chamar de “dignidade da pessoa humana”, a qual é pressuposta em toda forma humana (desde a concepção até a morte). Somos iguais em dignidade, o que torna injustificável sermos reificados e tolhidos em nossos direitos fundamentais (à vida, ao conhecimento, à liberdade, à propriedade privada etc.).
Contudo, da injustificabilidade da discriminação (que viola nossa dignidade – como quando somos escravizados, agredidos, mortos etc.) não se depreende que não possamos ser sujeitos à diferenciação.
E esse é um dos primeiros problemas da chamada “ideologia de gênero”. Em verdade, todos os problemas que podem ser apontados em tal “ideologia” residem precisamente no fato de que ela se resume a isso: a uma ideologia. Ou seja, ela é uma abstração mental desvinculada seja do bom senso (senso comum), seja dos fatos (realidade), incorrendo, intencionalmente ou não, em um grave e danoso processo de engenharia social (visão planificadora). Não surpreende, pois, que os sectários dessa ideologia sejam os mesmos que frequentemente sustentam outras ideias (planificadoras) contrárias à realidade, como rejeição da economia de mercado (da liberdade econômica) e da propriedade privada, defesa do multiculturalismo etc. Em suma, tais indivíduos partem de uma mera ideia e a tentam impor dogmaticamente contra a realidade, contra o bom senso e contra a razão mesma. O resultado é sempre desastroso, uma vez que tais ideias causam miséria, sofrimento, morte etc. Exemplos empíricos são abundantes e me eximirei de citá-los aqui.
Assim, mais especificamente em relação à ideologia de gênero, ela ignora (por estultice, por má-fé, realmente não sei) alguns fatos incontornáveis da natureza humana. Inicialmente, ela ignora que homens e mulheres são caracterizados por profundas diferenças fisiológicas e, consequentemente, mentais. Tais diferenças, aliás, causam um impacto colossal seja no sucesso seja no fracasso de vidas individuais e de instituições sociais como, por exemplo, a família.
Sem embargo, por tratar-se de ideologia, ela toma como uma de suas bases uma ideia proposta em 1949 por Simone de Beauvoir, autora da famosa passagem (citada ad nauseam pelos partidários da ideologia de gênero) segundo a qual “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”. Ou seja, ela ignora arbitrariamente a biologia, permitindo a separação entre sexo e gênero.
Tal passagem, com efeito, não possui qualquer fundamento que não seja, obviamente, uma mera ideia quimérica que surgiu na mente de sua autora. Mas isso está de acordo como uma ideologia que ignora os fatos, as razões, a ciência, isto é, a realidade mesma. Mais recentemente, outra forte influência sobre os ativistas/ideólogos da ideologia de gênero é Judith Butler, a qual também parece repudiar a biologia e insistir na ideia segundo a qual “ser homem ou ser mulher não é um dado biológico, é um dado performático”. Vejam: são frases de efeito que escondem, sob um pseudointelectualismo, um obscurantismo pernicioso. Assim, embora sejam frases assignificativas, elas não são inócuas: elas são danosas à ciência, ao conhecimento e, por fim, à vida individual e social.
Não obstante, cabe enfatizar que teoria alguma (nem decisão judicial pela mesma razão) mudará a realidade. Afinal, nem tudo depende de nossos estados mentais, tampouco de “como nos sentimos”. Dessa forma, nossa sexualidade envolve, também e sobretudo, aspectos biológicos (físicos) que independem absolutamente de como nos sentimos com relação a isso. Além do dimorfismo sexual (das diferenças evidentes entre homens e mulheres, as quais podem ser disfarçadas de forma impressionante), há um aspecto mais profundo das diferenças entre homens e mulheres, a saber, o dimorfismo cerebral, o qual é muito mais complexo e envolve questões ainda estudadas de forma incipiente por endocrinologistas. Colocado de outra forma, há aspectos endocrinológicos complexos e difíceis de serem alterados, os quais fazem parte de um campo que tem sido explorado pela endocrinologia. Noutros termos, não há como revogar a biologia, assim como não há como revogar a lei da gravidade para evitar que as pessoas caiam.
Em suma, embora exista certamente uma zona cinzenta (na qual estão aqueles que verdadeiramente sofrem de disforia de gênero, os quais dificilmente fazem parte de grupos de ativistas/ideólogos e realmente precisam de ajuda médica), em geral as coisas são mais simples. Desse modo, foi ao reconhecer esse fato que o teórico evolucionista Matt Ridley, em seu estudo Nature via Nurture (de 2004), por exemplo, esclareceu que “hoje ninguém nega que homens e mulheres são diferentes não só na anatomia, mas também no comportamento (...) há diferenças mentais e físicas consistentes entre os sexos”. Outro autor fundamental para esse debate é Simon Baron-Cohen (precursor da “empathising-systemising [E-S] theory”), o qual demonstrou de forma consistentemente documentada as diferenças existentes até mesmo entre bebês de sexos diferentes. Ou seja: a biologia atua em todos os momentos da vida, marcando as diferenças entre os sexos mesmo em bebês.
Outro estudo seminal sobre o tema é a edição de outono de 2016 da The New Atlantis: A Journal of Technology and Society, um relatório cientificamente robusto (com diversos estudos) que demonstra, dentre outras coisas, que “identidade de gênero não é, de forma alguma, independente do sexo biológico”. E há, ainda, o notável livro When Harry Became Sally: Responding to the Transgender Movement (de 2018), de Ryan Anderson, o qual esclarece, não a partir de ideias, mas de razões e da ciência, que todas essas teorias que separam gênero de sexo são intencionalmente confusas e obscuras, pois não possuem fundamento científico algum.
No entanto, embora exista vasta bibliografia científica sobre o tema, eis que o ativista, o ideólogo, busca por outras fontes e rejeita declaradamente a ciência (afinal, a ciência é muitas vezes “politicamente incorreta”) em sua defesa da separação entre gênero e sexo. Colocado sucintamente: o ideólogo parte da ideologia (enraizada em usa visão política, mormente de esquerda, ou “progressista”). E, para atingir seu propósito, ele recorre não a razões e fatos, mas a sentimentos e a um pseudointelectualismo.
Portanto, todo indivíduo preocupado seja com a educação, seja com a ciência e com a prosperidade, bem como com as pessoas, compreende como assustador que uma ideologia como a ideologia de gênero possa vir a fazer parte da formação escolar de crianças e jovens, obliterando e confundindo suas mentes. Isso porque tal ideologia representa uma negação da ciência e dos fatos que são hoje conhecidos e documentados, particularmente sobre as diferenças entre homens e mulheres. Trata-se, pois, a ideologia de gênero de uma perspectiva obscurantista que causa nefastos efeitos sobre a ciência e sobre a vida individual e social. Afinal, à cultura não cabe rejeitar a “nature”, mas integrá-la (“nature” via “nurture”): nossa educação deve partir do reconhecimento desse fato, do fato da diferença entre homens e mulheres, e educá-los promovendo seu pleno desenvolvimento individual, o qual será, também e em consequência, causa de fortuna social.
Por fim, ainda há outro aspecto temível da imposição da ideologia de gênero, qual seja, o da negação (censura) da ciência e do que conhecemos sobre a sexualidade humana. Isso porque, quando uma ideologia como a ideologia de gênero passa a viger, são várias as consequências deletérias dela decorrentes. Por certo ela causa danos a instituições, como à família, às instituições de ensino etc. Mas ela causa também uma consequente violação da liberdade. Afinal, uma vez inserida na formação escolar, a ideologia de gênero trará consigo a censura relativa àquilo que a ciência nos ensina.
Dito de outra forma, tudo aquilo que, de alguma forma, contrariar a ideologia de gênero entrará para uma nova espécie de Index Librorum Prohibitorum (muito provavelmente sob a acusação de “homofobia”, novo mantra “progressista”). Estudos serão ou proibidos de serem realizados ou de serem divulgados. Por exemplo, hoje sabemos que 88% das garotas e 98% dos garotos que relatam disforia de gênero passam a se identificar com seu sexo biológico ao final da adolescência, segundo a American Psychiatric Association (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 2013, 451-459), desde que sejam acompanhados e auxiliados a compreender sua sexualidade biológica.
Haverá liberdade de expressão, ou de cátedra, para que estudos como esse sejam expostos e debatidos quando o tema for ideologia de gênero? Poderemos trazer para o debate os estudos que revelam que quem sofre de disforia de gênero tem maior probabilidade de sofrer de depressão (e que isso não está relacionado com algum preconceito externo como causa), bem como que a redesignação de sexo não resolve o problema? Por exemplo, o mais vasto estudo feito até esse momento, de Pachankis e Bränström, revela que pacientes submetidos à redesignação de sexo e a tratamentos hormonais não tiveram benefícios atinentes à saúde (“Reduction in Mental Health Treatment Utilization Among Transgender Individuals After Gender-Affirming Surgeries: A Total Population Study”, na edição de outubro de 2019 do The American Journal of Psychiatry).
Tais estudos, vigorosamente embasados cientificamente, poderão ser arrolados no debate? Ou serão censurados pela narrativa dogmática dos mesmos ungidos que têm banido os estudos que questionam o isolamento social, o uso obrigatório de máscaras, bem como os que sustentam (desde uma perspectiva científica) a alta probabilidade de sucesso no tratamento precoce contra a Covid-19 a partir do uso da hidroxicloroquina? Também nesses casos vige o dogmatismo de uma narrativa hostil à liberdade, à diversidade (de ideias), ao diálogo e, pois, à ciência (aos critérios de cientificidade).
Em suma, há incontáveis estudos que expressam verdades inconvenientes. Elas poderão ser usadas quando o assunto for ideologia de gênero? Haverá liberdade para apresentar essas verdades? Quem são, afinal de contas, os obscurantistas? Segundo vejo, obscurantista é aquele que, por ignorância ou má-fé, censura, proíbe, queima livros (ou reputações), impede a liberdade de expressão, a liberdade religiosa, a liberdade acadêmica, a liberdade de imprensa etc. Ora, uma mera mirada ao redor nos mostra exatamente quem está promovendo o obscurantismo, quem representa uma real ameaça à liberdade e à ciência e, consequentemente, à prosperidade.
Assim, não posso evitar de expor publicamente, como acadêmico e defensor da liberdade, minha preocupação com a possibilidade de que a ideologia de gênero, ainda que desprovida de qualquer base científica, venha a fazer parte da formação de crianças e jovens, especialmente tendo em vista suas graves consequências morais, institucionais, educacionais e para a liberdade.
Um país que ocupa as últimas posições nas avaliações internacionais atinentes à educação, sofrendo com diversos flagelos sociais, realmente não deveria estar preocupado em qualificar o ensino, fortalecendo a ciência e o tecido social moral, pilares de uma sociedade próspera?
Carlos Adriano Ferraz, professor na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), é graduado, mestre e doutor em Filosofia, com estágio doutoral na State University of New York, foi professor visitante na Universidade Harvard, é vice-presidente da Associação Docentes pela Liberdade e atualmente trabalha no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.