Ministro da Defesa diz que licitação vencida por empresa israelense não foi aprovada por “questão da guerra, do Hamas”.| Foto: Iano Andrade/CNI
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Há muito, a psicologia comportamental tem tentado formular teorias e desenvolver teses a respeito do processo que envolve a decisão de compra por parte dos consumidores. Os avanços obtidos nessa seara são grandes, mas ainda não fornecem a resposta definitiva sobre qual perspectiva é determinante na efetivação da escolha: objetiva ou subjetiva.

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Sabe-se que somos, em grande parte, guiados por elementos concretos da oferta, como preço, qualidade, escassez etc. Contudo, não há como negar que determinados aspectos abstratos, como um forte apelo afetivo ou emocional, podem apagar qualquer racionalidade decisória e nos fazer optar pela alternativa com a pior relação “custo-benefício”. Contudo, se essa oscilação entre o concreto e o abstrato e se essa plena liberdade de escolha é permitida – e, até mesmo, incentivada – aos cidadãos em geral, não se pode admitir o mesmo em relação ao poder público.

O TCU impediu que, na decisão de compra realizada com recursos públicos, prevalecessem vieses ideológicos, que são, em essência, derivados de percepções pessoais, políticas e partidárias

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Não é surpresa para ninguém que o orçamento público é composto pela soma da arrecadação tributária e do eventual retorno financeiro positivo oriundo da atividade estatal. Em razão da origem compartilhada desses recursos, foram editadas normas bastante restritivas sobre o procedimento que deve ser seguido para que a sua utilização seja autorizada.

O principal mecanismo adotado para garantir a lisura da aquisiçãode produtos e da contratação de serviços pelo poder público é a licitação. Nos termos do art. 37, caput, da Constituição, em todas as suas esferas de atuação, “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”.

Especificamente no que se refere à posição do Estado como contratante, a Constituição estabelece que, “ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações” (art. 37, XXI).

No plano infraconstitucional, a Lei 14.133/2021 (Lei de Licitações) define que, no âmbito da sua aplicação, “serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942” (art. 5º, caput).

Em resumo, nosso ordenamento jurídico busca impedir que, no processo de aquisição e de contratação públicas, haja influência de fatores abstratos e subjetivos, de modo que prevaleça o melhor interesse da coletividade, representado pela escolha pautada exclusivamente em critérios concretos e objetivos.

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Apesar da imperatividade dos comandos legais que obrigam a adoção de postura imparcial pela Administração, essa parece não ter sido a conduta eleita pelo atual governo em episódio tornado público recentemente pelo Ministro da Defesa, José Múcio Monteiro. De acordo com o chefe da pasta, “a questão diplomática interfere na Defesa. Houve agora uma concorrência, uma licitação. Venceram os judeus, o povo de Israel, mas por questões da guerra, o Hamas, os grupos políticos, nós estamos com essa licitação pronta, mas por questões ideológicas não podemos aprovar”.

Segundo José Múcio, “o TCU [Tribunal de Contas da União] não permitiu dar ao 2º colocado e nós estamos aguardando que essas questões passem para que a gente possa se defender”. Apesar de não ter enfrentado diretamente a possibilidade da preterição da empresa vencedora por força de divergências ideológicas – pois o Ministério da Defesa omitiu essa questão específica em sua consulta –, o TCU deixou evidente a proibição de que qualquer elemento que não estiver expressamente indicado na legislação possa alterar o resultado alcançado pela licitação .

A corte de contas asseverou, portanto, que, uma vez fixados os critérios técnicos almejados, estipuladas as condições objetivas do procedimento, e preservada a concorrência em circunstâncias leais e paritárias, deve ser garantida a escolha da empresa que formalizou e comprovou a melhor proposta.

O TCU impediu que, na decisão de compra realizada com recursos públicos, prevalecessem vieses ideológicos, que são, em essência, derivados de percepções pessoais, políticas e partidárias. Trata-se de louvável decisão, que garante a predominância da norma geral sobre a vontade individual e que, afastando tendências governamentais temporárias, preservou a higidez de uma política permanente de Estado, representada pelo império das leis. Em um contexto jurídico cada vez mais contaminado por graves incertezas, reafirmou-se o lógico: onde impera a lei e a Constituição, ideologia não combina com licitação.

Paulo Liporaci é sócio do Liporaci Advogados.

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