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Existe um mundo árabe? "Revolução, revolução, como um vulcão, contra Mubarak, o covarde", cantavam os manifestantes de Alexandria, há uma semana. Da Tunísia ao Egito, uma tempestade de areia deu a resposta à indagação. A 17 de dezembro, na cidade tunisiana de Sidi Bouzid, o vendedor de rua Mohamed Bouazizi imolou-se em fogo para protestar contra o confisco de seu carrinho de vegetais. O martírio de Bouazizi deflagrou um levante popular que, quase um mês depois, arrancou os dentes da polícia e do exército, provocando a fuga do ditador Zine Ben Ali. Dias mais tarde, jovens dançavam diante dos tanques nas cidades egípcias, enquanto Hillary Clinton lamentava a garantia que dera na véspera, ao proclamar a "estabilidade" do regime de Hosni Mubarak.

Poucas coisas são mais poderosas que a experiência histórica compartilhada. Em 1989, a abertura da fronteira entre Hungria e Áustria, em maio, prenunciou a queda do Muro de Berlim, em novembro, e a extinção do "socialismo real". A derrubada de Ben Ali exerce, entre os povos árabes, uma influência similar à da remoção das barreiras húngaras de arame farpado na esfera de poder soviético. O mundo árabe ergue-se sobre uma língua e uma literatura comuns, uma tradição que atravessa fronteiras. Bouazizi não é um nome, mas uma experiência, para os cidadãos de Túnis, do Cairo, de Argel, de Amã, de Sanaa, de Cartum e até de Riad.

Abusa-se do conceito de cultura. Mundo árabe, na visão de Bernard Lewis, é uma coleção de valores arraigados, que derivam do Islã e conflitam com a tradição ocidental. O "príncipe dos orientalistas" enxergou um defeito irremediável na cultura árabe-muçulmana: uma resistência visceral à mudança que condenaria os árabes à exclusão da modernidade. "A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico", assegurou Lewis no estilo categórico que lhe granjeou uma reputação imerecida. Hoje, na larga faixa que se estende da África do Norte ao Oriente Médio, árabes muçulmanos exigem liberdade, democracia, direitos, respeito à coisa pública. "Eles" são, no fim das contas, iguais a "nós".

Lewis é um intelectual engajado, o inventor da noção de "choque de civilizações" e o inspirador da ocupação americana do Iraque. Do seu teorema principal, ele extraiu o corolário de que os árabes só poderiam ser resgatados para a modernidade por meio da negação de sua própria cultura. O significado político disso é que o Ocidente teria a missão de libertar os árabes das amarras do "pensamento islâmico", conduzindo-os – pela força, se preciso – até a colina das Luzes. Sob o influxo de tais ideias, os EUA continuaram a sustentar as ditaduras pró-ocidentais no mundo árabe, que se apresentam como paliçadas defensivas contra o avanço do fundamentalismo islâmico. A revolução em curso é uma evidência de que Lewis está errado: nas ruas do Cairo, reivindica-se a liberdade e não o retorno do Profeta.

A revolução árabe desenvolve-se nas brechas abertas por um cenário mundial em mutação. Ben Ali caiu não só porque os "de baixo" se insurgiram, mas também porque os "de cima" se cindiram quando ficou patente que a França se esquivava de salvar seu regime. Há menos de dois anos, na Universidade do Cairo, Barack Obama delineou uma nova política dos EUA para o mundo árabe-muçulmano. O presidente rejeitou os dogmas do orientalismo, apontou as contribuições da civilização islâmica para a Renascença e as Luzes, tocou cuidadosamente nas teclas da liberdade e da democracia. O discurso de Obama pode ter sido esquecido no Ocidente, mas continua a reverberar no Egito, tanto entre os "de cima" quanto entre os "de baixo".

O Egito é o núcleo do mundo árabe. A primeira, frustrada, revolução árabe começou lá, mais de meio século atrás, com a ascensão de Gamal Abdel Nasser. No Cairo, de uma costela da Irmandade Muçulmana, surgiram os arautos originais do jihadismo de Osama Bin Laden. A estratégia geral dos EUA para o Grande Oriente Médio foi definida pela decisão de Anuar Sadat de romper com Moscou para firmar uma aliança com Washington, após a segunda derrota militar frente a Israel. Mubarak não é um ditador secundário, como Ben Ali, mas um dos pilares da ordem geopolítica regional. Há razões para Hillary Clinton insistir ainda numa transição controlada, sob a égide de um "diálogo nacional". Mas, curvando-se a tais razões, Obama renegará seu discurso do Cairo e posicionará os EUA no lado errado da história.

Nenhuma corrente islâmica está à frente da revolução árabe. Os levantes emanam da sociedade civil, especialmente das organizações de advogados e de estudantes e das centrais sindicais. A oportunidade para os fundamentalistas surgiria de uma violência repressiva prolongada. Na Tunísia, a dissolução acelerada da unidade do exército propiciou a queda de Ben Ali. Algo parecido está ocorrendo no Egito, desde o dia em que os chefes militares rejeitaram a ordem de matar seus compatriotas. A revolução árabe não obedece à cartilha de Osama Bin Laden nem reproduz a trajetória da revolução iraniana de 1979.

Mohamed ElBaradei, um dos líderes da oposição egípcia, acertou duas vezes: ao clamar pela saída incondicional do ditador e ao firmar um pacto democrático com a Irmandade Muçulmana, uma corrente perseguida que renunciou ao terror há quatro décadas e condena sistematicamente a violência jihadista. "Obama precisa entender que, se continuar com essa política, perderá credibilidade diante de toda a população do Oriente Médio", alertou ElBaradei. Ele poderia reforçar seu argumento convidando o presidente americano a olhar atentamente para as imagens dos manifestantes que tomaram as cidades árabes. Aquelas pessoas não são diferentes dos poloneses, alemães orientais, tchecos e húngaros de 1989, nem dos iranianos de 2010. São iguais a nós – apenas falam e rezam em outra língua.

Demétrio Magnoli, sociólogo, é doutor em Geografia Humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br

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