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Muito se tem dito sobre as várias pesquisas que vêm sendo desenvolvidas visando uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. Dado o impacto da pandemia em todos os âmbitos da nossa vida, tal feito será motivo de celebração e de alegria para toda a população. É também por isso que os governos dos países mais ricos e influentes, como China, Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e Rússia, com o apoio de potentes empresas farmacêuticas, abriram uma corrida sem precedentes para a testagem, a produção e a distribuição da vacina. Há muita fumaça em torno dessa fogueira e é preciso que estejamos atentos, porque muitas motivações comerciais e disputa de prestígio e poder cercam esse que poderia ser considerado um dos mais relevantes acontecimentos científicos dos últimos tempos.
Além das questões éticas ligadas à seriedade e responsabilidade na testagem e divulgação dos resultados – do que não apenas depende a eficácia da vacina, mas também a sua segurança em relação a possíveis efeitos colaterais –, uma outra questão ética está envolvida: quem terá direito aos seus benefícios ou, em outras palavras, quem terá o privilégio de ser vacinado primeiro? A questão, que parece bastante simplória, deixa de sê-lo se pensarmos que a pandemia explicitou a enorme desigualdade de acesso à saúde e aos demais bens sociais por parte da maior parcela da sociedade mundial. Inúmeras pesquisas mostram que os pobres e vulneráveis são os mais contaminados e também os que apresentam faixas de letalidade maiores, basicamente porque são os que mais se expõem e os que menos contam com serviços médicos de qualidade.
Nesse cenário, não é difícil imaginar que o acesso à vacina poderá seguir a mesma lógica do acesso ao atendimento médico: os que podem pagar terão preferência. Não seria estranho imaginar que tudo começará pelos mais ricos dos países ricos, passará pelos ricos dos países pobres e só depois, bem por último, pelos pobres e pela população em geral. Essa, pelo menos, é a lógica de todos os demais serviços, inclusive das vacinas para doenças mais simples, como as gripes anuais.
Tal ameaça é tão evidente que levou o papa Francisco a declarar: “seria triste se a prioridade da vacina da Covid-19 fosse dada aos mais ricos. Seria triste se isso se transformasse na prioridade de uma nação e não fosse destinado a todos”. É o papa mesmo que chama atenção para o fato de que o “vírus não tem exceções e encontrou grandes desigualdades e discriminações em seu caminho devastador e as fez crescer”. Ele tem em mente as cenas terríveis que afetaram ricos e pobres ao redor do mundo, mas que agravaram a situação de pobreza, desemprego e morte entre os mais vulneráveis, que desde sempre vêm sendo alijados das benesses do progresso, pois as vacinas estão entre as maiores conquistas da humanidade para o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas que, ao que tudo indica, podem ser mais comuns de agora em diante.
A marginalização e a injustiça social são problemas que afetam o mundo de forma vergonhosa; sua solução passa pelo empenho dos governos em fazer esforços para que todas as vidas importem, eliminando as formas de exclusão social e as desigualdades que deixam à margem milhares de pessoas. O acesso à vacina é só mais um capítulo dessa história, mas nos dá a oportunidade de avaliarmos como queremos seguir daqui para a frente. A pandemia nos dá a chance de garantir que todas as pessoas mundo afora possam acessar os bens que foram construídos com o investimento de dinheiro público e o esforço de toda a humanidade.
Assim, a beneficência – ou a não maledicência – da vacinação em massa deve ser discutida não apenas do ponto de vista sanitário, mas também social: será moralmente indesejável e eticamente condenável tanto causar danos aos indivíduos que venham a confiar na ciência quanto priorizar a imunização dos mais ricos. Cabe aos governos e às suas instituições evitar que uma situação economicamente seletiva deixe mais uma vez à mercê do próprio azar precisamente aquela parcela da população que mais depende da ajuda estatal.
Com isso, chegaríamos à noção de justiça, celebrada pela bioética como um dos seus princípios fundamentais porque refere-se precisamente à igualdade de tratamento e ao justo acesso aos benefícios da pesquisa médica. A vacina só será eficaz se ela também nos ajudar a superar a doença da desigualdade social de acesso à saúde.
Jelson Oliveira, filósofo, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).