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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

De todas as forças que se apropriam de um ser humano, a obsessão com o real parece ser a mais contraditória e angustiante. A Sabina de Milan Kundera (a pintora de A Insustentável Leveza do Ser) descobre esse princípio por meio do choque: uma pintura mais real que a realidade retratada pode ser partida por um fio de tinta e, subitamente, inaugura a impressão de que há, para além da tapeçaria do real, algo mais. Atrás da fissura há um mundo, pleno e contraditoriamente vazio, e tudo o mais não passa de um amontoado de ilusões e idealizações, das quais por vezes dependemos para sobreviver.

Assim surge a decisão do governo austríaco que determina o fechamento de sete mesquitas e a possível expulsão de 40 imãs do país. Um olhar apressado pode fabricar um retrato de traços realistas e estabelecer rapidamente dois lados para o dilema. Um deles é o de um governo formado pela centro-direita e direita austríacas, coligação eleita no período de maior resistência à imigração e que prometeu tomar medidas de redução do fluxo de imigrantes para o país.

Do outro lado, vemos os próprios adeptos do islamismo divididos. As mesquitas diretamente afetadas estão vinculadas a comunidades turcas de inclinação salafista (movimento sunita que agrega aos ensinamentos do Alcorão as observações de gerações subsequentes a Maomé). Ao mesmo tempo, grupos islâmicos parecem defender a decisão do governo austríaco, rejeitando solidariedade aos grupos afetados.

Não é possível negar o mal-estar.

Dois extremos lutam enquanto direitos são ignorados. Quem perde é a comunidade

No centro do problema, uma notícia circula há algumas semanas pelos periódicos austríacos, causando razoável polêmica: noticiou-se a encenação, por crianças turcas, da batalha de Gallipoli em mesquita salafista de Viena. Gallipoli foi uma das poucas vitórias decisivas do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. Atacados por britânicos e franceses, os nacionalistas turcos defenderam Constantinopla, garantindo a segurança da cidade. Durante a encenação, as crianças representavam soldados mortos em combate; caídos, eram envolvidos pela bandeira turca, em uma representação de evidente orgulho nacional.

Na ocasião, o primeiro-ministro Sebastian Kurz se pronunciou ferozmente contra o evento, alegando sua natureza radical e seu interesse político. A microfísica das relações em choque começa a se revelar, mas não se encerra no evento em si. A mesquita em questão é local de congregação de um grupo conhecido pelo nome de Lobos Cinzentos. O grupo, fundado no fim dos anos 60 na Turquia, tem claros interesses nacionalistas, sendo classificado como organização de extrema direita, xenofóbica e discriminatória ao extremo. Após os anos 90, os Lobos Cinzentos iniciaram uma campanha em nome dos interesses políticos de uma suposta Pan-Turquia, avançando para países estrangeiros com comunidades turcas islâmico-salafistas representativas. Um dos alvos foi, evidentemente, a Áustria.

A consequência direta foi, portanto, a medida radical tomada pelo governo austríaco, já inclinado (em virtude de seu próprio nacionalismo excessivo e atitudes discriminatórias) a desencorajar as correntes de imigração, notadamente aquelas taxadas de “eixos de formação terrorista”. No meio disso, os grupos muçulmanos não diretamente afetados não parecem compreender o precedente que começa a se formar. Propostas radicais por parte do governo poderão surgir no futuro, tendo alcance ainda mais amplo.

Leia também: O Islã é compatível com a modernidade? (artigo de Ali Zoghbi, publicado em 1.º de dezembro de 2018)

Nossas convicções: O Estado laico

Não se pode esquecer que a legislação de 1998, aprovada com participação dos partidos componentes do atual governo, já impunha limitações veladas a práticas religiosas, classificando grupos religiosos em “sociedades”, “comunidades” e “seitas”, atribuindo-lhes diferentes graus de privilégios jurídicos (“sociedades” recebem suporte financeiro do governo austríaco, “comunidades” podem ter propriedade e “seitas” só existem juridicamente como associações comuns). A realidade se desnuda e se parte: mesmo que minha regulamentação garanta o seu direito, ela ataca suas prerrogativas limitando seus meios de ação. Sem que você perceba, eu o censuro e eu o discrimino.

A legislação de 2015, que afeta diretamente grupos islâmicos, agrava o problema, tanto por criar mais limitações quanto por torná-las mais específicas. Com a ação, uma política sutil de restrição de ingresso de culturas e religiões estrangeiras começa a se formar. Os grupos islâmicos que não se sentem afetados pela decisão permitem um aumento das políticas de repressão de um governo que avança para práticas autoritárias (respeitando os limites legais, mas sorrateiramente predando direitos). Para o governo austríaco, contudo, não agir representa um risco: os Lobos Cinzentos jogam com os argumentos de liberdade de expressão e prática religiosa para disfarçar posicionamentos políticos agressivos. O próprio governo Erdogan, que tem mostrado extremo autoritarismo na Turquia, reprovou a ação como demagógica e populista, e como uma agressão aos direitos de seus compatriotas turcos. Mas esse é o mesmo Erdogan responsável por excessos repressivos, ações irregulares contra cidadãos, restrição de direitos, islamização antidemocrática da Turquia etc.

A obsessão com o real trouxe as massas ao momento presente. Tão obstinadas estão com suas próprias prerrogativas que idealizam o real e não percebem a pressão de grupos radicais para a formação de ordens autoritárias, violentas e antidemocráticas. Nesse caso, dois extremos lutam enquanto direitos são ignorados. Quem perde é a comunidade que anseia pela liberdade de culto com genuína fé e legítimas idiossincrasias. E, infelizmente, o cenário se repete, independentemente de países, idiomas e culturas.

Rafael Zanlorenzi é doutor em Direito e professor do curso de Direito da Universidade Positivo (UP).
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