No livro O Feijão e o Sonho, o escritor Orígenes Lessa apresenta uma contradição que habita no coração de todos os brasileiros. A obra conta a história de Campos Lara, um poeta que tem grandes sonhos de criação literária, mas que não consegue realizá-los, pois se sente preso aos desafios práticos e às responsabilidades de ordem material. Ele nunca chega a escrever uma grande obra, porque precisa preocupar-se com a sobrevivência e o sustento da família.
Orígenes Lessa apresenta essa tensão entre sonho e vida prática como uma contradição inconciliável. Quantas reclamações não ouvimos em nossas famílias e círculo de amigos que se encaixam exatamente no quadro descrito por Lessa? Incapaz de realizar seu sonho, o indivíduo joga a culpa de sua frustração nas limitações do seu meio, na precariedade de seus recursos, nas responsabilidades profissionais. Porém, a verdade é que essa contradição não está na realidade da vida humana: ela é fruto de uma limitação no repertório cultural dos brasileiros. E essa limitação acarreta em inúmeros males na cultura nacional.
De um lado, temos indivíduos sem fibra e resignados à mediocridade de suas vidas.
É relativamente fácil provar que essa contradição é apenas uma crença limitante que não condiz com a realidade. É possível exibir inúmeras biografias que resolvem esse problema. E não é necessário recorrer a biografias de homens que mudaram o curso da história da humanidade ou que atingiram os mais altos patamares de realização humana e espiritual — como a vida dos santos, por exemplo. A título de ilustração, podemos escolher uma biografia análoga ao personagem Campos Lara: um escritor que tenha de enfrentar desafios de ordem prática. Um bom exemplo disso é a vida de Alexander Soljenítsin.
Soljenítsin é autor do famoso livro Arquipélago Gulag. Em sua obra máxima, o escritor russo descreve com detalhes impressionantes a experiência macabra dos gulags soviéticos. Ele não faz apenas um relato de sua experiência como prisioneiro, mas apresenta a origem histórica e cultural dos campos de concentração. A obra foi o primeiro relato da realidade por trás da propaganda comunista. O império soviético era construído com o sangue de escravos e prisioneiros políticos. Mas, para além do ineditismo, o que chama atenção é que Soljenítsin foi capaz de descrever os gulags com qualidade literária. Ou seja, não é apenas o relato em si que nos impressiona, mas a forma como ele relata. Ele não escreveu apenas uma obra, mas uma grande obra de altíssimo valor literário e histórico. O livro recebeu, inclusive, o prêmio Nobel de Literatura em 1970.
Do outro, sujeitos que acreditam que é necessário concentrar o máximo de poder e influência para poder realizar uma mudança social.
A qualidade da obra ganha um valor ainda maior quando consideramos a condição na qual ela foi escrita. Soljenítsin era um simples professor de matemática que serviu como capitão do exército soviético na Segunda Guerra Mundial. Foi preso pelo governo soviético, sendo acusado de propaganda antissoviética ao fazer uma piada sobre Stalin em uma correspondência trocada com um amigo. A partir de sua prisão, ele passa por inúmeros campos de concentração, fazendo com que sua experiência carcerária fosse vastíssima. Ele conheceu de perto a fome, a injustiça, a morte e a tragédia como poucos testemunharam. Os gulags foram os predecessores dos campos de concentração nazistas, mas o horror que habitava os campos russos não era diferente dos campos alemães.
É justamente nessa condição — a mais desfavorável possível — que Soljenítsin inicia sua carreira como escritor. A situação humilhante em que o artista se encontrava não foi motivo de resignação. Pelo contrário, sua condição foi o centro motivacional para sua ação no mundo. Ou seja, o que Soljenítsin realiza em vida é algo muito mais grandioso do que Orígenes Lessa pôde imaginar para Campos Lara. A biografia concreta do escritor russo supera a imaginação criativa do brasileiro. O que entendemos como limitação insuperável é apenas um dado comum da vida humana.
Uma das frustrações comuns é a ideia de que precisamos das condições ideais para executar boas obras.
Essa limitação no imaginário nacional gera um imenso bestiário de frustrações e incompreensões. Uma das frustrações comuns é a ideia de que precisamos das condições ideais para executar boas obras — compreensão que pode variar infinitamente no quadro das possibilidades.
O sonho só poderá ser realizado quando se conquistar um diploma, comprar um carro, tiver um negócio de sucesso e ganhar muito dinheiro. Mas o caso é justamente o contrário: nada de relevante foi feito em condições ideais, mas sempre em condições adversas. É a crença na necessidade da situação ideal que impede tantos de realizar obras relevantes e de desenvolver uma atuação significativa.
Há uma incapacidade de identificar essa verdade básica da vida humana: a hora de realizar uma grande obra é aqui e agora.
Há uma incapacidade de identificar essa verdade básica da vida humana: a hora de realizar uma grande obra é aqui e agora. É no meio das contradições, usando elas como ferramentas criativas para seus projetos. É articulando as tensões da vida e desejando genuinamente criar algo de valor para o próximo. É o que chamo de “apostolado da coisa em si”. Ao invés de ficarmos presos no campo imaginário dos meios de ação, precisamos simplesmente agir, meditando na obra que estamos construindo e no valor que ela tem em si mesma. Os meios de ação podem variar, mas o nosso foco precisa estar centrado na obra que iremos realizar.
Nos extremos dessas frustrações, encontram-se ideias aparentemente antagônicas, mas que se alimentam mutuamente. De um lado, temos a paralisia total, a incapacidade de ação e a vida ressentida. Se não é possível superar as contradições diárias, então é melhor nem tentar realizar nossos sonhos. Essa é a vida da mesa de bar, da lamentação e do ressentimento. Na outra ponta, existe a ideia contrária: apegados à necessidade da situação ideal, o brasileiro tende a achar que somente quando ele adquirir todos os meios de ação ele poderá realizar algo relevante. Essa é a vida do sociopata, daquele que acredita que é preciso dominar para agir.
Acredito que essa seja uma das razões para o brasileiro ter uma tendência natural para a tirania. De um lado, temos indivíduos sem fibra e resignados à mediocridade de suas vidas. Do outro, sujeitos que acreditam que é necessário concentrar o máximo de poder e influência para poder realizar uma mudança social. Esses últimos sofrem daquilo que Olavo de Carvalho descrevia como mentalidade revolucionária: a ideia de que é preciso concentrar poder na mão de alguns poucos indivíduos que serão responsáveis diretos pela grande mudança civilizacional.
Tanto a esquerda como a direita sofrem dessa patologia. A esquerda justificando todas as ações a uma finalidade política. De acordo com esse pensamento, uma expressão artística genuína é aquela que contribui para o avanço da revolução política: tudo deve se submeter a isso. Já para a direita, há a ideia de suplantar os núcleos de poder e de influência por novos conglomerados. Através de uma compreensão torta sobre o conceito de ocupação de espaços, vive a ilusão de que é possível criar novos núcleos de influência política capazes de enfrentar estados inteiros ou organizações centenárias. Ambos os lados querem concentrar o poder para transformar a sociedade. E nenhum deles está preocupado com a coisa em si: o valor poético e artístico — e, portanto, cultural e civilizacional — de suas obras.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.