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Opinião do dia

Imigração: fluxo negro

O Brasil começa a viver algo que há mais de meio século não vivia: ser novamente um centro imigratório. Seria um fato absolutamente normal e de simples trato, para o qual aparentemente o poder público já estaria preparado, pois não foram poucas as ondas imigratórias nos séculos 19 e 20. Na verdade, à exceção da base indígena e da vinda compulsória africana, não somos nada além de um grande amálgama de culturas imigratórias.

Ao ascender na escala das economias em franco desenvolvimento e tornar-se um país promissor, volta o Brasil a encontrar um lugar no tabuleiro das relações internacionais não apenas reduzido ao mercado primário. Algo indispensável para o seu crescimento, para a melhoria das condições de vida, para a redução da significativa miséria ainda existente, mas fundamental para começarem a surgir os primeiros problemas sociais, que podem ser resumidos na moldura do "preconceito".

Não tardarão em aparecer movimentos patrióticos e nacionalistas, que empunharão a bandeira verde e amarela, aos ventos de estádios e arenas, a todo custo, como imagem de sucesso e de louvor. Não é fato novo, pois nas poucas vezes que o país pode, porque em outras tantas não teve voz, não parece ter sido a lógica do apaziguamento o horizonte de nossa política externa – salvo em algumas situações extremadas, quando a repercussão interna não seria de todo o ruim, ou, pelo contrário, seria ideológica e simbolicamente interessante, como no Haiti e no Timor Leste.

Se o ufanismo ainda virá, o repúdio à imigração já chegou. A vinda de haitianos neste início do ano submete ao país uma questão interessante, que é saber se o poder público e mesmo os brasileiros estão preparados para aceitar imigrantes sem condições econômicas. Repudiamos há pouco o controle das fronteiras que nos é imposto na Espanha, na Inglaterra e nos EUA. Entendemos absurda a política de tratamento adotada pelos países centrais em relação aos imigrantes, aos estrangeiros e, sobretudo, a nós, "brasileiros". Contudo, estaríamos preparados para aceitar esse novo fluxo? Não foi difícil aceitar a vinda de alemães e italianos, e toda a sua riqueza culturalmente interessante para o país, pois na segunda metade do século 19 aqui se construía o Estado, e a política do branqueamento da população e da eliminação da escravatura bem serviam de aconchego ideológico. Mas será fácil assim aceitar um fluxo negro, de homens livres e em condição econômica desfavorecida?

Não são poucas as manifestações que começaram a correr disfarçadamente nos coquetéis e nas praças públicas, porque na mídia já se sabem das consequências. O Brasil é um país que amadurece e aceita os direitos humanos como norte a cada dia, sobretudo no campo do racismo, implementando diversas políticas públicas. Mas será igual o tratamento também com relação a esse novo fluxo? Será que aceitarão haitianos tanto quanto se aceitaram imigrantes europeus? Fica a questão.

E se essa aceitação ocorrer, será vinculada a um tratamento digno ou faremos como algumas nações fazem, criando em nossas fronteiras "campos de refugiados", com comida e cama, para que aguentem, quem sabe, ser enviados novamente em containers o mais rápido possível? Ou quem sabe os colocaremos disfarçadamente entre chassis de caminhões e caçambas, como se faz com os curdos na Grécia ou os africanos na Itália, e os despejaremos além da fronteira? E aos imigrantes ilegais, reservaremos tratamento de polícia?

É preciso evitar que o preconceito chegue sorrateiramente e se disfarce em argumentos como valorização da mão de obra nacional, incapacidade de lidar com os próprios problemas e inexistência de recursos para todos. Aliás, é chegada a hora de se adotar uma verdadeira política pública de inclusão e de educação para os direitos humanos, pois de nada adianta receber imigrantes latino-americanos se no dia a dia os brasileiros não estiverem aptos a lidar com o estrangeiro, com o convívio cotidiano, com a concorrência salarial, com a variedade idiomática e cultural, enfim, com a diversidade repentina e não apenas histórica. Trata-se, afinal, de um campo vastíssimo, em que uma tênue linha separará a boa política da vergonha pública.

Guilherme Roman Borges, doutor em Filosofia do Direito na USP, é Juiz Federal Substituto (TRF3). Rui Carlo Dissenha, doutorando em Direito Humanos na USP, é advogado e professor de Direito Penal e Direitos Humanos.

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