O mecanismo de congelar preços voltou à tona na imprensa nacional após o presidente da Argentina, Mauricio Macri, anunciar tal proposta para conter o processo inflacionário no país.
Nos últimos 12 meses, a inflação acumulada foi de 54,7%. Uns dos principais motivos foram os reajustes nos preços administrados pelo governo, como energia e gás, denominados de “tarifaços de Macri”. O pão e o macarrão, produtos muito consumidos na Argentina, aumentaram 80% e 96% respectivamente no mesmo período.
Contudo, o governo argentino não está tratando a intervenção no mercado como congelamento, o que levaria a uma contradição no discurso liberal de Macri, mas sim, como preferem denominar, de um “acordo voluntário de preços”.
Temos evidências históricas suficientes para não utilizar o mecanismo arbitrário de congelar os preços. No ano 301 d.C., o imperador romano Diocleciano congelou os preços e quem não respeitasse teria pena de morte decretada. Mesmo assim não funcionou. Já em 1971 os Estados Unidos, sob a tutela de Richard Nixon, pasmem, anunciaram congelamento de preços e salários por 90 dias – Nixon chegou a pedir para o Chefe de Gabinete de Administração e Orçamento, George Shultz, não conversar com o famoso economista liberal Milton Friedman, tamanha era a vergonha.
Chamar o congelamento de “acordo voluntário de preços” nada mais é que um eufemismo de uma República das Bananas
A própria Argentina já utilizou o mecanismo diversas vezes desde meados dos anos 70, inclusive em formas distintas de governo como civil, militar, centro-esquerda e direita. Vale destacar o Plano Austral de 1985, anunciado mediante uma inflação que chegou a 1.000% ao ano, e mais recentemente com a ex-presidente Cristina Kirchner.
E, claro, o Brasil não fica de fora desta lamentável experiência. Vivenciamos entre 1986 e 1991 um verdadeiro laboratório de experimentos da ciência econômica. Acredito que boa parte dos leitores lembra dos planos Cruzado (1986), Verão (1989), entre outros. O problema, aqui, é que o laboratório foi a própria sociedade. E sofremos muito com os equivocados experimentos. Mas, por que ainda assistimos a essa prática patética?
Antes de apontar alguns problemas do congelamento de preços, vamos ao que provoca a inflação. A inflação é uma espécie de “vírus” que infecta uma moeda e corrói seu poder de compra, enquanto o aumento nos preços é o sintoma da doença, como a febre.
Suas causas, de modo geral, são: i) emissão desordenada de moeda, ou senhoriagem, em especial para cobrir déficit público, ii) choques de oferta e demanda, como uma quebra de safra, por exemplo, e iii) o trade-off entre inflação e desemprego no curto prazo, demonstrado pela Curva de Philips - quando a taxa de desemprego reduz a pressão inflacionária aumenta e vice-versa (os Bancos Centrais, como o brasileiro, já adotam medidas mitigadoras para este fenômeno).
O problema é quando a inflação se manifesta de forma inercial, ou seja, quando é consequência da inflação passada mais a expectativa futura dos agentes econômicos e se torna o epicentro de uma intervenção governamental. Neste caso, o governo, munido de toda sua autoridade e procedimentos legais, dirige-se para a economia de mercado e declara algo do tipo: “quem manda aqui sou eu!”, propondo o congelamento de preços arbitrariamente.
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A ingenuidade desta atitude está no fato de acreditar que a inflação se tornou um aspecto cultural por parte dos agentes econômicos, então bastaria proibir que os preços aumentem. Simples, não é mesmo?
De forma alguma, pois o congelamento não ataca a origem do processo. E como não consegue destruir o “vírus”, apesar dos preços tabelados, o mercado passa a utilizar uma alternativa muito conhecida em períodos de Planos de Estabilização: o pagamento generalizado de ágio.
Neste caso o ágio é uma inflação não capturada, pois acontece em ambiente clandestino, ou seja, no preço tabelado, o empresário não oferta o produto, mas com ágio ele surge como o coelho da cartola. Por isso todos os congelamentos fracassaram ao longo da história.
Fracassam por dois motivos elementares: primeiro porque atravessam a sincronia entre a cadeia produtiva de fornecedores, produtores e comerciantes. Como o congelamento é um “decreto”, com data determinada, tende a ocorrer um desequilíbrio na sincronia; por exemplo: se uma empresa está promovendo temporariamente seu produto com preço mais baixo que do mercado, não poderá retornar ao equilíbrio, e os produtores que, de alguma forma sofrem aumento nos custos, não podem repassar aos preços, o que tende a gerar desabastecimento, retroalimentando a inflação. Segundo, e mais importante, porque ignora a flutuação natural dos preços, ou seja, revoga as leis básicas e estruturais de uma economia de mercado.
Mas o que está acontecendo com a Argentina? Desde 2016 o país perdeu mais de 200 mil postos de trabalho formal; a capacidade instalada da indústria reduziu de 64,4% para 58,5% nos últimos 12 meses; o desemprego aumentou e hoje está 9,1% - maior índice em 13 anos. O PIB reduziu 2,5% em 2018 e as previsões do FMI (Fundo Monetário Internacional) para este ano são de uma redução de 1,2%.
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Um cenário recessivo árduo, que reflete diretamente na qualidade de vida dos argentinos: a pobreza vem crescendo significativamente – no início dos anos 70 o índice de pobreza era parecido com o de um país europeu, próximo de 5% (Buenos Aires era conhecida com a Paris da América Latina). Hoje está em 32% da população.
No entanto, a falta de dinamismo na economia argentina não é causada pelo atual governo, apesar de ele estar dando continuidade a um status quo instalado na América Latina.
Mesmo assim, chamar o congelamento de “acordo voluntário de preços” nada mais é que um eufemismo de uma República das Bananas, bem ao estilo do filme “Bananas” do renomado escritor e diretor de cinema Woody Allen – “República das Bananas” é um termo pejorativo cunhado para países latino-americanos, que apresentam instabilidade política e desigualdade social, sob a égide de um governo populista.
Não é à toa que o “acordo voluntário de preços” tem duração prevista para seis meses, coincidindo com o primeiro turno das eleições presidenciais, o que demonstra que Macri sucumbiu ao populismo kirchneriano, inclusive sendo chamado por críticos argentinos de “Macristina”, ou a cristinização de Macri, a interseção dos nomes Macri e Cristina (Kirchner), uma populista que, como Dilma Rousseff, conseguiu gerar uma instabilidade política e, consequentemente, macroeconômica em seus medíocres governos: dar a impressão de poder de compra para a população mais pobre é garantia de votos.
Aliás, é importante ressaltar que o Plano Real não utilizou do mecanismo de congelamento, mas sim de condições de mercado para a estabilização dos preços. Claro, pagou um alto preço por não ser populista.
Jackson Bittencourt é economista, doutor em Economia Regional e Coordenador do curso de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).