Não é de hoje que especialistas destacam o quão importante é o cuidado durante a infância e como os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo. Nos primeiros seis anos, o cérebro se desenvolve por meio da nutrição, dos cuidados recebidos e da interação da criança com outras pessoas e também com o ambiente no qual está inserida. Acredita-se que, nesta fase, o cérebro seja capaz de estabelecer 90% de suas conexões, por isso a importância dos estímulos positivos. Quando uma criança é negligenciada, como quando ocorre quando elas estão em situação de rua, algumas ligações neurais deixam de acontecer devido às experiências que incluem (des)afetos e descobertas. Isso pode afetar o potencial de aprendizagem e desenvolvimento, impactando toda a vida.
Ao nascer, a criança já absorve direitos constitucionais, listados no artigo 6º e que a protege desde a gestação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dentre outros pontos, ressalta a saúde, alimentação, dignidade, o respeito e a convivência familiar não só como dever dos pais, mas também do poder público e de toda a sociedade. Segundo estimativa do IBGE, o Brasil contabiliza 53.759.457 de pessoas com menos de 18 anos. Mas, apesar de toda a teoria, a realidade de quase 70 mil crianças e adolescentes (segundo dados da ONG Visão Mundial) é bem diferente. Para ao menos 51% delas, que estão em situação de rua, esse conjunto de direitos são violados todos os dias.
Parece pouco, mas acolhida, escuta e cuidados básicos (como banho, alimentação e descanso) transformam vidas.
Regionalizando esses dados, o Censo divulgado em julho de 2022 pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo revela que, nos últimos 15 anos, o número de crianças e adolescentes nas ruas passou de 1.842 (em 2007) para 3.759 (em 2022), com 71,6% se autodeclarando como preto ou pardo. A pesquisa mostra ainda que, ainda que por um pequeno período do dia, 73,1% utilizam as ruas como forma de sobrevivência, 16,2% estão nos mais de 140 serviços de acolhimento e 10,7% pernoitam nas ruas. O maior percentual está na faixa de 12 a 17 anos (42%), seguidos por crianças de até seis anos (30,6%).
Perceba: somente na cidade de São Paulo, crianças incluídas na faixa etária que é considerada a mais importante para o desenvolvimento cerebral estão recebendo como estímulos escassez e indiferença, além de serem expostas a diferentes tipos de violência todos os dias. Como forma de amenizar essa demanda, lugares como o Centro de Referência para Crianças e Adolescentes em Situação de Rua são criados.
Inaugurado no último mês de novembro, o CRCA é uma iniciativa do Sefras – Ação Social Franciscana, viabilizada pelo Projeto de Lei 0253/2021, cujo objetivo está centrado na garantia e efetivação de direitos fundamentais em consonância e em respeito aos marcos legais e normativos - especialmente os que estão listados nos Artigos 87 e 88 do ECA. O serviço, que é inédito na cidade de São Paulo, funciona no modelo porta aberta com a pretensão de realizar 50 atendimentos, sete dias por semana, via buscas ativas e passivas. Visando mitigar questões de vulnerabilidade e minimizar o impacto dessas vivências, o CRCA vai realizar a abordagem e conexão das crianças com o seu lugar de origem, com o intuito de lhes devolver proximidade e dignidade.
Essa é uma forma de reparar o que faltou lá atrás. Parece pouco, mas acolhida, escuta e cuidados básicos (como banho, alimentação e descanso) transformam vidas. Sendo assim, concluo com uma mensagem um tanto quanto provocativa: o que falta para fortalecer políticas públicas que assegurem os direitos enquanto a rua não é uma realidade? Por que esperar estar à margem, para incluir? Não se deve normalizar a invisibilidade e nem individualizar as vulnerabilidades. Afinal, o extremo se instala pela falta de saúde, emprego, segurança, educação.
Frei José Francisco de Cássia dos Santos, frade licenciado em Filosofia e Teologia, é diretor-presidente da Ação Social Franciscana (SEFRAS).