| Foto: Antonio Costa/Arquivo Gazeta do Povo

Você conhece algum grande veículo da imprensa brasileira que se posicione contra ou, pelo menos, de uma maneira marcadamente crítica em relação às reformas do governo Temer? Vale televisão, jornal, revista e internet. Pense nos três líderes de mercado em cada uma dessas quatro categorias. Considerando tanto os posicionamentos explícitos, assumidos, quanto os implícitos – em editoriais, reportagens, títulos, destaques e na opinião majoritária entre os artigos de opinião –, como fica o placar? Seis a seis? Oito a quatro? Ou 12 a zero para o time pró-reformas?

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Alguém que não saiba muito mais sobre o Brasil provavelmente suporia se tratar de um grande consenso nacional.

Vejamos, então, o que diz o Instituto Datafolha, que leva no próprio nome uma das grandes marcas da imprensa brasileira, a respeito da opinião popular sobre o tema. Em pesquisa publicada em 13 de dezembro, dia em que a PEC do Teto foi aprovada no Senado, 60% dos brasileiros eram contra essa emenda constitucional, enquanto apenas 24% a aprovavam. A opinião dos brasileiros sobre a reforma trabalhista que hoje tramita no Congresso foi medida em pesquisa do instituto publicada no início de maio. De acordo com ela, na hipótese de aprovação da reforma, 58% dos brasileiros acreditavam que os trabalhadores perderiam direitos, 21% disseram que os trabalhadores permaneceriam com os mesmos direitos e 11% consideravam que ela lhes traria mais direitos. Também em tramitação parlamentar, a reforma da Previdência teve a sua popularidade medida numa pesquisa divulgada no dia 1.º de maio. Resultado: 23% a favor, 71% contra.

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Como explicar que, num país que se diz democrático, todos os maiores grupos e veículos de comunicação se reúnam em um dos lados de uma disputa político-ideológica deixando, do outro, a maioria da população?

Poderia ser uma opção meramente mercadológica. Supondo que a maioria contrária às reformas praticamente se limitasse às camadas mais pobres da população, distanciar-se de suas opiniões e interesses poderia ser um “classismo” racional do ponto de vista estritamente comercial. Se, entretanto, levarmos em conta mapas de votação, pesquisas de opinião, de preferência política e partidária, e de intenção de voto, constataremos que a maioria contrariada pelo viés da mídia dominante inclui parte significativa dos cidadãos com maior formação educacional e providos de renda suficiente para integrar o público-alvo preferencial das empresas privadas de mídia.

A posição quase unânime da grande mídia brasileira em relação às reformas não é apenas impopular. É também pouco democrática

No caso das reformas do governo Temer, é importante lembrar, não estamos diante de projetos para a economia e a sociedade que disputaram a preferência popular, democraticamente, com visões e propostas diferentes e se legitimam por um mandato chancelado pelas urnas. Ao contrário: as prioridades de governo, os programas e projetos que receberam um mandato popular nas últimas eleições presidenciais são incompatíveis com as atuais reformas.

Mesmo que se aceite que os três objetos das reformas – os gastos públicos, a legislação trabalhista e as normas previdenciárias – precisam mesmo ser reformados, nenhuma reforma específica é a única reforma possível. Seria possível desenhar reformas compatíveis com o mandato que os eleitores brasileiros deram, ainda que involuntariamente, ao vice Michel Temer. Bastaria que elas se pautassem pela busca de justiça social, combate à pobreza e à desigualdade, reduzindo privilégios e onerando preferencialmente os mais ricos. O que se vê na PEC do Teto e em seus previsíveis impactos, e também nas reformas trabalhista e previdenciária, é o oposto: privilégios se mantêm intocados, enquanto os maiores sacrifícios são reservados aos historicamente sacrificados.

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A posição quase unânime da grande mídia brasileira em relação às reformas – contrastante, inclusive, com manifestações de órgãos da ONU, que as têm avaliado como socialmente injustas, retrógradas e até mesmo atentatórias aos direitos humanos –, portanto, não é apenas impopular. É também pouco democrática e, no mínimo, negligente com os direitos, interesses e perspectivas dos mais pobres. E contraria parte relevante da classe média e da intelectualidade do país.

Não seria razoável esperar alguma rachadura, dissidência, no bloco compacto da mídia corporativa? Mesmo que fosse, novamente, por razões meramente comerciais?

A Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a mais reconhecida organização internacional dedicada à defesa e ao monitoramento da liberdade de informação e das condições de trabalho dos jornalistas, esclarece parte importante dessas dúvidas sobre o alinhamento ideológico da nossa imprensa com uma frase. “A propriedade da mídia continua muito concentrada, especialmente nas mãos de grupos empresariais familiares que frequentemente são próximos da classe política”, diz a RSF sobre o mercado jornalístico brasileiro (por essas e outras, no ranking de 2017 da mesma organização, o Brasil figura num sofrível 103.º lugar – entre a Ucrânia e o Kuwait – numa relação de 180 países).

Do mesmo autor:O Brasil é para amadores (17 de junho de 2017)

Rogerio Galindo: Em busca da honestidade intelectual (13 de agosto de 2014) 

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A resposta da RSF deve ser completada pelo fato de que, de acordo com relatório das Nações Unidas sobre desenvolvimento humano divulgado em março, o Brasil é o décimo país mais desigual do mundo no ranking do coeficiente Gini. Onde poucas famílias concentram uma quantidade excessiva de riqueza e poder, abre-se um abismo entre os interesses dos endinheirados e os da grande maioria da população. Por isso não é de se estranhar que os donos do poder e das “prensas” tenham basicamente a mesma posição em relação às grandes linhas da política econômica e à distribuição de bônus e ônus entre os grupos socioeconômicos do país.

A mídia brasileira tem, além disso, um histórico de simbiose com o poder político. Fenômeno que revela sua “concretude financeira” na forma de linhas de financiamento estatal com condições privilegiadas e na constante injeção de recursos públicos por meio da publicidade governamental e de empresas públicas. Aliás, a chamada “mídia alternativa” tem noticiado que, no governo Temer, os recursos públicos destinados a grandes veículos, privados, de imprensa, como pagamento por espaço publicitário, cresceu significativamente.

Nesse contexto da mídia corporativa brasileira, pouco favorável ao exercício independente e democrático do jornalismo, é justo ressaltar algumas práticas e iniciativas que, mesmo não resolvendo as deficiências fundamentais do mercado nacional de informação, colaboram para minorá-las. É o caso, por exemplo, da manutenção da pluralidade nos espaços de opinião – excetuados os editoriais, é claro – da Folha de S. Paulo. Esta Gazeta do Povo faz também algo que deveria ser mais comum na imprensa brasileira: corre os saudáveis riscos da honestidade e da transparência ao formular e publicar neste site, na seção Nossas Convicções, não apenas seus próprios princípios e valores, mas também posicionamentos claros em relação a várias questões da agenda nacional. E honra seu compromisso com a promoção da cultura democrática – uma das convicções assumidas pelo jornal – dando espaço para opiniões divergentes. 

Vejamos o exemplo de veículos jornalísticos de influência global que acabam de cobrir intensamente o processo eleitoral do Reino Unido. No pleito de 8 de junho, os eleitores ingleses, galeses, escoceses e da Irlanda do Norte escolheram entre projetos políticos essencialmente distintos. Os seis partidos que disputaram e conquistaram cadeiras no parlamento do Reino Unido ofereceram alternativas claramente de direita, de esquerda e de centro.

Cada um dos três veículos britânicos de origem impressa mais conhecidos e lidos mundo afora, expressando a sua perspectiva ideológica, declarou apoio a um partido diferente. A revista The Economist escolheu os Liberais-Democratas, de centro. O jornal Financial Times “abriu voto” no Partido Conservador, à direita. O Partido Trabalhista, que este ano ofereceu um projeto de governo mais decididamente à esquerda em relação ao que vinha propondo nas últimas décadas, foi apoiado pelo jornal The Guardian. Enquanto entre veículos de tradição impressa vigora a pluralidade, na televisão outro valor da imprensa democrática – a imparcialidade – norteia os canais públicos Channel 4 e, sobretudo, BBC.

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Há, portanto, veículos privados que assumem suas posições político-ideológicas, oferecendo, em conjunto, perspectivas que contemplam os principais grupos de opinião e interesse da sociedade, e veículos públicos que atuam como mediadores equilibrados de todas essas posições e, sem tomar partido, abordam representantes de todas elas com o mesmo esforço de esclarecimento, ceticismo questionador e espírito crítico. E, nesses dois grupos, há veículos reconhecidos internacionalmente por sua competência investigativa e rigor factual.

Já no Brasil, faltam tanto a pluralidade de perspectivas editoriais quanto veículos jornalísticos efetivamente comprometidos com a imparcialidade. Déficits democráticos que começam a ser atenuados, na internet, graças a iniciativas jornalísticas “alternativas” (em relação aos líderes de mercado) e à chegada de empresas estrangeiras, como a própria BBC, o El País e a Deutsche Welle, cuja cobertura da política brasileira, em português, se diferencia da oferecida pelos maiores veículos brasileiros por ser, de maneira geral, menos partidarizada e mais equilibrada.

Esse bem-vindo arejamento do mercado de informações on-line ainda é tímido. A maioria dos blogs e sites jornalísticos alternativos se limita a publicar opinião política. Iniciativas promissoras na área da reportagem – coração do jornalismo – ainda não encontraram fórmulas de remuneração que lhes proporcionem independência editorial e fôlego para a produção contínua de qualidade. E não podemos nos esquecer de que cerca de 40% da população do país (80 milhões de pessoas) ainda não tem acesso à internet.

A consolidação e o avanço da democracia e da cultura democrática no Brasil implicam redução das nossas abissais desigualdades, e podem ser impulsionadas por reformas: política, educacional, tributária... e, sim, também previdenciária e trabalhista, desde que legitimadas por mandato popular, transparentemente apresentadas e debatidas pela sociedade. Transparência e debate que serão precários enquanto não for superado o déficit democrático da nossa imprensa.

Flavio Lobo, jornalista, assessor e consultor de Comunicação, é mestre em Comunicação e Semiótica.