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A recente proposta do governo federal de instituir uma alíquota adicional de até 10% sobre rendas superiores a R$ 600 mil anuais, apresentada como forma de compensar a ampliação da faixa de isenção do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), revela-se um equívoco técnico, econômico e jurídico. Apesar de ser apresentada sob a justificativa de corrigir desigualdades sociais e promover justiça tributária, a medida desrespeita princípios basilares do direito tributário e pode gerar impactos econômicos negativos que extrapolam a questão fiscal.
A adoção de uma alíquota progressiva, que alcança 10% sobre a totalidade da renda anual de contribuintes de alta renda, não apenas amplia a já elevada carga tributária no Brasil, mas também afronta o princípio da capacidade contributiva, previsto no artigo 145, §1º, da Constituição Federal. Este princípio exige que a tributação seja estruturada de forma a respeitar a proporção da riqueza auferida pelo contribuinte, sem configurar uma penalidade sobre o sucesso financeiro. No caso em análise, a imposição de um piso mínimo para a contribuição, desconsiderando gastos essenciais ou tributos já recolhidos, representa uma distorção que compromete a equidade do sistema tributário.
Ao invés de promover a justiça fiscal, as novas alíquotas progressivas e as limitações às deduções de saúde apenas agravam as distorções do sistema tributário brasileiro
Além disso, a limitação das isenções fiscais relacionadas à saúde para contribuintes que auferem rendas superiores a R$ 20 mil mensais reforça a desconexão da proposta com a realidade econômica dos brasileiros. É inegável que o direito à dedução integral das despesas médicas no IR visa proteger o contribuinte diante de custos elevados com tratamentos de saúde, os quais frequentemente extrapolam os limites financeiros de qualquer faixa de renda. Restringir tal benefício para um segmento específico não só afronta o princípio da igualdade, como também cria uma situação em que contribuintes de maior renda, muitas vezes responsáveis pelo financiamento do próprio tratamento de saúde e de familiares, passam a ser onerados de maneira desproporcional.
Do ponto de vista econômico, a medida apresenta um caráter eminentemente arrecadatório, em total contradição com as diretrizes de estímulo ao crescimento e ao investimento privado. Aumentar a carga tributária sobre as altas rendas, especialmente em um cenário em que o Brasil já possui uma das maiores cargas tributárias globais, tende a desencorajar a geração de riqueza e afastar investimentos. Não se pode desconsiderar que contribuintes de alta renda desempenham um papel relevante na dinamização econômica, seja pelo consumo, seja pela aplicação de capitais em setores produtivos.
Sob o prisma técnico, a proposta também falha ao desconsiderar os efeitos cumulativos da tributação sobre as diversas fontes de renda. A incidência de uma alíquota mínima sobre rendimentos que já sofrem tributação em diferentes níveis, como salários, dividendos e juros sobre capital próprio, resulta em um fenômeno conhecido como bitributação, que é amplamente repudiado na doutrina tributária. Tal prática não só compromete a legitimidade do sistema tributário como também viola o princípio da não confiscatoriedade, consagrado no artigo 150, IV, da Constituição.
Ademais, a proposta reflete uma falta de planejamento sistêmico ao apresentar medidas de compensação fiscal isoladas, sem abordar os reais entraves estruturais do sistema tributário brasileiro. A simplificação tributária, amplamente defendida por especialistas, permanece relegada a segundo plano, enquanto o governo opta por criar tributos adicionais que agravam a complexidade já existente. A adoção de alíquotas progressivas em um sistema reconhecidamente regressivo, sem a revisão de outras obrigações tributárias, representa mais um paliativo que desvia o foco das reformas estruturais necessárias.
Por fim, a narrativa governamental de que tais medidas visam “incluir os mais ricos no imposto de renda” ignora que a alta carga tributária já incidente sobre esse segmento, somada às regras ineficientes de distribuição de recursos, é um dos fatores que perpetuam a desigualdade social no Brasil. A verdadeira justiça fiscal não será alcançada pela criação de tributos adicionais, mas pela revisão ampla e estrutural do sistema, garantindo que todos contribuam de forma justa e proporcional, com contrapartidas claras na prestação de serviços públicos de qualidade.
As medidas propostas pelo governo federal configuram um equívoco técnico e jurídico, além de representarem uma solução arrecadatória que ignora os princípios constitucionais da capacidade contributiva, da igualdade e da não confiscatoriedade. Ao invés de promover a justiça fiscal, as novas alíquotas progressivas e as limitações às deduções de saúde apenas agravam as distorções do sistema tributário brasileiro, penalizando contribuintes de alta renda que já arcam com uma carga tributária excessiva. Urge que o Congresso Nacional rejeite tais medidas, exigindo do governo uma reforma tributária ampla, equilibrada e verdadeiramente voltada à redução das desigualdades sociais e ao estímulo ao crescimento econômico.
Leonardo Roesler, advogado, especialista em Direito Tributário, sócio-fundador da RMS Advocacia e Consutoria e sócio do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa IBGC.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos