| Foto: Luiz Costa/Arquivo Gazeta do Povo

Recentemente, tive a oportunidade de participar de um evento que debatia a inovação como estratégia fundamental tanto para direcionar as pesquisas das universidades brasileiras quanto para as corporações do chamado setor produtivo. Nesse dia me deparei com um discurso polido e correto, por parte de todos os envolvidos, no que diz respeito a missões e objetivos dessas corporações multinacionais no sentido de gerar produtos e/ou soluções para as mais diferentes necessidades relatadas pelos consumidores. Podemos citar aqui alguns avanços orgulhosamente apresentados pelos expositores como o desenvolvimento de peças mais seguras para a indústria automobilística ou, ainda, alimentos que têm em sua composição substâncias que fazem uma liberação lenta de seus açúcares no organismo, evitando picos glicêmicos.

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Todas essas soluções, de caráter verdadeiramente legítimo e com imenso apelo comercial e de marketing, foram citadas dentro de uma lógica centrada quase que exclusivamente em proporcionar benefícios para a qualidade de vida de seu consumidor. A discussão apenas tangenciou tópicos a meu ver relevantes, como o financiamento das pesquisas que deram origem aos produtos, o modelo de negócios proporcionado por aquelas inovações, ou mesmo as novas práticas comerciais advindas desses negócios. Toda a retórica foi esmeradamente marcada por provar que aquelas empresas apenas visam o bem-estar e a felicidade de seus consumidores, inclusive por cumprirem à risca preceitos de sustentabilidade.

Na prática, essas camadas de verniz não seriam necessárias pensando pela lógica do mercado, em que a competitividade e o lucro são fatores intrínsecos à inovação e que coletivamente já se justificam um ao outro. Entretanto, a sociedade parece esperar, com avidez, essa postura de aparente responsabilidade social e ambiental que pode até mesmo definir as fatias de mercado, impactando no ápice dessa cadeia, isto é, o lucro. Mas, se a inovação por si só é algo positivo e que sempre permeou a nossa civilização, não sendo uma ideia originária do mundo corporativo, embora tenha sido apropriada por ele, qual o problema nesse tipo de abordagem quando olhamos para a universidade brasileira e a pesquisa científica oriunda dela?

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O conhecimento científico puro nem sempre tem uma relação linear com a inovação

Podemos identificar claramente uma mudança de direção das políticas de financiamento científico no Brasil que agora estão trazendo explicitamente, como mote principal, a palavra-chave “inovação”. Esse fato pode ser facilmente constatado em qualquer chamada pública do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) ou de agências de fomento estaduais que, invariavelmente, salientam que os projetos de pesquisa devam estar inseridos num contexto inovador, visando, portanto, a geração de produtos e processos. Esse redirecionamento fica ainda mais evidente quando verificamos que o então Ministério de Ciência e Tecnologia agora tem na inovação uma nova aquisição para o seu acrônimo, MCTI (infelizmente, o MCTI foi fundido, durante o governo Temer, ao Ministério das Comunicações, gerando um quimérico MCTIC).

Há de se refletir que a ciência, desde os idos do pensamento clássico grego, busca formular perguntas sobre a natureza e sua própria existência, observando, sistematizando e explicando os mais profundos fenômenos e fatos, de forma racional e metódica. Portanto, como encaixar a inovação dentro de tal perspectiva? A resposta parece já estar contida na definição aqui apresentada. A inovação sempre permeou a atividade científica. Alguns exemplos são notórios, como é o caso da penicilina de Fleming (1928), a Teoria da Relatividade Geral de Einstein (1915), a queda de árvore de Lucy que levou à sua morte (Kappelman et al., 2016, em artigo que descreve as causas da morte de Lucy – Australopithecus afarensis –, que apresentava um padrão incomum de locomoção arbóreo para um hominídeo) e a técnica de manipulação genética pelo uso da enzima CRISPR (Barrangou e Horvath, 2012, em artigo que descreve um sistema de alta sensibilidade para o reconhecimento de sequências específicas de DNA de células alvo, se tornando uma ferramenta fundamental dentro da biologia molecular) . Todas essas descobertas e tantas outras não mencionadas aqui foram frutos de intensa investigação científica, nos levando para novos horizontes de como viveremos e nos reconheceremos como seres humanos. A inovação está capilarizada em todas essas descobertas científicas com maior ou menor potencial comercial, mas sem dúvida com imenso impacto sobre a humanidade.

Raramente grandes companhias investirão altas somas em projetos de ciência básica

O ponto a que quero chegar é que vejo que o conceito de inovação, da forma como é propagandeado atualmente, se encontra distorcido em favor do mercado, pura e simplesmente. Com isso, enxerga-se a inovação como sendo um sinônimo para produto de alto valor agregado e, de preferência, com maior público-alvo possível. Subverte-se aqui a lógica da ciência que busca entender a vida e seus fenômenos, às vezes se deparando com potenciais produtos comercialmente atrativos, em benefício de se buscar o produto a qualquer preço. As universidades e seus pesquisadores parecem estar à margem desse tipo de discussão, apenas aceitando tacitamente essas mudanças e tentando se enquadrar dentro dos moldes apresentados.

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O conhecimento científico puro, que é alvo de estudo pelas ciências básicas (de acordo com a Unesco) como a química, a matemática, a física e as ciências da vida, nem sempre tem uma relação linear com a inovação. A academia está acostumada a um modelo, já há muito cristalizado, de que a ciência básica vem primeiro, pavimentando as descobertas de invenções e produtos para um segundo momento. Como resultado dessa nova mecânica, centrada na inovação, corremos o risco de testemunhar projetos de pesquisa em ciência básica propondo artificialmente em alguns casos, para os órgãos de fomento, que aqueles experimentos a serem conduzidos de fato tenham como objetivo principal a geração de produtos e/ou processos. Essa distorção, em que ou o pesquisador se adequa ou não concorre ao financiamento, acaba por gerar expectativas potencialmente frustrantes para todos os envolvidos e, como consequência, empurra a discussão para debaixo do tapete.

Leia também:  DNA de inovação (artigo de Marcos Cintra, publicado em 24 de maio de 2017)

Leia também:Inovação sem visão sistêmica? (artigo de Marcos de Lacerda Pessoa, publicado em 30 de março de 2017)

A que se destina o modelo tradicional de financiamento científico público? Será que o governo deveria privatizar essa atribuição, deixando o mercado e suas organizações ditarem, majoritariamente, os rumos da produção de conhecimento? Essas perguntas não têm resposta simples, ainda mais em um período de crise política e econômica em que a escassez de recursos e seu contingenciamento são a regra. Mas, quando olhamos para os avanços científicos de enorme magnitude na atualidade, como a descoberta do bóson de Higgs ou a detecção de mares de metano na superfície de Titã (uma das luas de Saturno), vemos que só foram possíveis por meio de financiamento público. Raramente grandes companhias investirão altas somas em projetos de ciência básica, via de regra considerados quase como obras de caridade. Outro risco a ser considerado com essa transferência de responsabilidade integral para o setor privado seria uma iminente perda de liberdade de pensamento, liberdade esta que constitui a identidade principal da natureza de um cientista. Como resultado final poderemos ter um horizonte de ciência feita sob demanda de mercado ou, mais perigoso ainda, por hobby.

Outro elemento que deve ser levado em consideração nessa reflexão diz respeito ao ansiosamente aguardado Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei 13.243/2016). Este conjunto de dispositivos legais, que também traz um destaque para a inovação, tem por objetivo aproximar empresas privadas de universidades públicas, permitindo parcerias público-privadas com consequente aporte de recursos para as mais diversas áreas de produção de conhecimento. Em última análise, o Marco Legal poderá fomentar um ambiente de patrocínio privado a projetos de pesquisa de interesse direto de seus investidores. Portanto, corre-se o risco de projetos de ciência básica raramente usufruírem dessa prerrogativa. Ou então, veremos cada vez mais pesquisadores desesperados por manterem seus laboratórios funcionando, convencendo-se de que seus projetos também terão alguma aplicação direta e imediata. O quadro poderá ficar ainda mais dramático se vislumbrarmos um cenário em que o volume de recursos da União destinados ao MCTIC fique ainda mais minguado, e que isso seja justificado pela agora existência do Marco Legal, dessa forma, desonerando o governo de uma maior obrigação formal de financiar a ciência brasileira, como historicamente conhecemos. A eventual concretização disso, em maior ou menor escala, seria de enorme ironia, deixando a ciência brasileira regulada apenas pelo espírito da inovação, inovação essa cooptada pelo mercado e não uma consequência lógica do progresso científico.

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Marcelo M. S. Lima é professor do Departamento de Fisiologia e coordenador do Laboratório de Neurofisiologia da Universidade Federal do Paraná.