Já pensou ser poliglota sem estudar uma única língua estrangeira? Ou até mesmo aparecer em um vídeo falando algo que nunca ousou dizer? Ou ainda, estar em lugares nunca imaginados? E se a pessoa for uma candidata e aparecer nua onde não devia?
A cada ano eleitoral surge um assunto controverso e polêmico que parece dominar os temas de debates, estudos e, até mesmo, postagens nas redes sociais. Recentemente vivemos o momento da desinformação e da tentativa de combate, da polarização política, do uso indiscriminado dos aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram. A bola da vez, contudo, vem rápida, com surpresas, e com uma enorme capacidade de atualização: é a inteligência artificial.
A campanha de 2024 será um grande tubo de ensaio para a Justiça Eleitoral avaliar o uso da inteligência artificial nas próximas eleições
A campanha presidencial argentina em 2023 apresentou ao mundo ocidental o uso da inteligência artificial generativa nas propagandas políticas. De lá para cá muita coisa surgiu, mudou, e caiu no gosto do povo. Aplicativos de produção de textos, fotos e vídeos hoje são de fácil acesso e apresentam um resultado bastante realístico, levantando a preocupação com a habilidade do eleitorado de distinguir o que é real, e o que é fabricado. Empresas de tecnologia de renome mundial desenvolveram inteligências artificiais para chamarem de suas – não à toa que “AI” para a Apple significa “Apple Intelligence”, e não “artificial intelligence” como é para todas as demais.
Com essa preocupação, o Tribunal Superior Eleitoral editou a Resolução 23.732/2024 que incluiu os artigos 9º-B e 9º-C à Resolução 23.610, que regulamentam o uso de inteligência artificial na campanha de 2024 no Brasil. Ao contrário do que se divulgou num primeiro momento, a inteligência artificial não está banida das propagandas. A norma autoriza a utilização “de conteúdo sintético multimídia gerado por meio de inteligência artificial para criar, substituir, omitir, mesclar ou alterar a velocidade ou sobrepor imagens ou sons”, desde que devidamente identificado. Ou seja, será permitida a utilização, por exemplo, de imagens de fundo criadas inteiramente por inteligência artificial. Assim, a candidata poderá divulgar vídeos em todas as escolas do município, por exemplo, sem sair do estúdio de gravação.
Além disso, as melhorias na qualidade das imagens e dos sons, a produção de elementos gráficos de identidade visual, vinhetas e logomarcas e os recursos de marketing de uso costumeiro em campanhas poderão ser utilizadas indistintamente, sem qualquer identificação. Isso quer dizer que o filtro do Instagram está liberado. As candidaturas também poderão se valer de chatbot e avatares para se comunicar com o eleitorado, basta que no início da interação haja um aviso: “Atenção! Você não está falando com uma pessoa de verdade”.
Contudo, foi proibido “o uso, para prejudicar ou para favorecer candidatura, de conteúdo sintético em formato de áudio, vídeo ou combinação de ambos, que tenha sido gerado ou manipulado digitalmente, ainda que mediante autorização, para criar, substituir ou alterar imagem ou voz de pessoa viva, falecida ou fictícia (deep fake)”. Essa proibição é bastante incisiva, pois vem acompanhada pela previsão de que o seu descumprimento “configura abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, acarretando a cassação do registro ou do mandato”. Isso significa, a priori, que não será possível utilizar nenhuma forma de voz, imagem ou vídeo criado artificialmente, seja para criticar adversários, seja para otimizar a própria propaganda.
Ainda que a inteligência artificial generativa seja a maior fonte de alvoroço nos meios sociais, não podemos esquecer que a inteligência artificial, além da habilidade de gerar conteúdos, possui a capacidade de realizar previsões, buscas por padrões e otimizar nosso tempo. Nesse sentido a IA preditiva pode – e deve – ser utilizada na gestão das campanhas como recurso de fixação das estratégias políticas.
A campanha de 2024 será um grande tubo de ensaio para a Justiça Eleitoral avaliar o uso da inteligência artificial nas próximas eleições. Não poderemos, por muito tempo, fugir da evolução tecnológica e manter o Direito Eleitoral alheio às inovações. Posicionar a inteligência artificial como inimiga da democracia significa uma parada no tempo, uma alienação da nova realidade. O que precisamos é que a nova realidade seja acompanhada por educação tecnológica, responsabilidade (e responsabilização), transparência e explicabilidade para, então, ser aproveitada em benefício da comunicação política.
Luiza Portella, mestre em Direito, pós-graduada em Direito Processual Civil e graduada em Direito e Administração Empresarial, é pesquisadora do Núcleo de Investigações Constitucionais da Universidade Federal do Paraná, secretária da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/SC no Biênio 2022/2023 e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP).
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