Ouça este conteúdo
O século 20 foi um período marcado por grandes transformações sociais, revoluções culturais, remodelações econômicas, reviravoltas políticas e, sobretudo, pelo desenvolvimento tecnológico. Em meio às diversas rupturas paradigmáticas que se sucederam, observou-se, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, um vigoroso aprofundamento nas ciências computacionais e nos estudos da denominada “inteligência artificial”.
Objeto de fascínio na literatura, destacando-se as obras Inteligência Artificial, Eu, Robô e Homem Bicentenário – todas, inclusive, retratadas pela indústria cinematográfica –, a programação da execução de tarefas por mecanismos autômatos aprimorou-se e, hoje, faz parte do cotidiano da sociedade. Instituições financeiras, departamentos militares, centros de logística e até mesmo empresas varejistas têm se valido da interação artificial. Um palpável exemplo da inserção corriqueira dessa tecnologia é o chatterbot, comumente utilizado para conversar com clientes que buscam sanar dúvidas e problemas envolvendo produtos e serviços.
É certo que o elemento nuclear da inteligência artificial é a sua prévia programação no intuito de conseguir interpretar dados externos e utilizá-los para fins específicos. Trata-se de comandos direcionados a determinadas funções e a ela adstritos. Vale dizer, ainda que se busque um aprimoramento e maior autonomia desses sistemas, a razão de ser da artificial intelligence está condicionada à programação que lhe foi imposta.
Em contrapartida a esse cenário tecnológico, não é difícil perceber não ser o espírito humano fruto de programações mecânicas e preordenadas. Nessa linha, vale lembrar o pensamento do filósofo inglês John Locke, o qual apresenta a ideia de que o entendimento é uma “tábula rasa” e toda pessoa, desde a sua infância, vai sendo modelada a partir das experiências. O processo de compreensão, deveras, é amplo, contínuo e objeto de acentuados debates filosóficos e sociológicos.
A evolução da humanidade perpassa pela ininterrupta tarefa de aprender. O ser humano tem um espírito livre e a oportunidade de se desenvolver. A amplitude heurística dos conceitos permite descobertas e conhecimento que propiciem o bem de todos e um avanço social. No entanto, ao mesmo tempo em que se vislumbra essa latitude cognitiva, em tempos de disseminação de fake news tem se observado em determinados segmentos um regressivo processo de desinformação e limitação epistemológica. Diferentemente de outros tempos, o conhecimento oriundo de pesquisas, livros e debates tem sido suplantando em detrimento do disparo de mensagens automatizadas desprovidas de conteúdo revestido de base empírica minimamente razoável. Uma pletora de informações viciosas tem sido disseminada e, em vez de gerar um ponto crítico de resistência, tem encontrado terreno fértil para aceitação e irreflexão. Ao contrário da programada inteligência artificial, depara-se, pois, com uma “ininteligência natural”, isto é, um estado livre de rejeição ao conhecimento e a qualquer filtragem teórica do conhecimento.
Essa ininteligência natural pode ser entendida como um estado de acomodada resignação, no qual o indivíduo, paradoxalmente, resiste ao conhecimento, baseando-se em juízos meramente sensoriais, precipitados e sem qualquer análise investigativa e demonstração empírica. O problema está na aceitação dessa condição, em não verificar os fatos, confrontá-los. O próprio indivíduo assujeita de forma simplista o conhecimento às suas percepções. Em vez de um cauteloso estudo dos fatos, emergem argumentos ad hoc e resilientes às paixões do momento.
René Descartes, considerado o pai da filosofia moderna, assentou a proposição cogito, ergo sum (“penso, logo existo”). Em sua obra Discurso do Método, explicita uma vigorosa preocupação em buscar a verdade e rejeitar opiniões que não tivessem fundamentos sólidos. Em Meditações Metafísicas, coloca sob escrutínio todo o conhecimento, partindo, pois, da ideia de que um “gênio maligno” poderia ter subvertido o mais comezinho conhecimento no intuito de tudo averiguar. Em ambos os trabalhos, contudo, chama a atenção a humildade intelectual e a abertura ao debate. Colocando-se sempre como um estudioso e aprendiz, abre oportunidade para críticas e contrapontos.
Inúmeros exemplos poderiam ser elencados na história como pessoas que buscaram se aprofundar nas densas águas do conhecimento. A sociedade é marcada por conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica. Temas relacionados à ciência, economia e política não podem estar presos a um indivíduo solipsista que define o mundo de forma limitada aos seus juízos sensoriais. É preciso, pois, sair desse estado hobbesiano que apenas incita uma “guerra de todos contra todos” e restringe conceitos a posições binárias e sem qualquer rigor conceitual.
A deficiência epistemológica aliada a um orgulho pseudointelectual resultam na formação de juízos de valores e asserções estéreis. A abertura ao debate é inerente ao progresso humanitário. Urge, pois, interromper o juízo formado com base no “encaminhamento” de mensagens e vídeos. A programação intelectual requer uma refutação socrática, no contexto de conhecer a si mesmo e descontruir analiticamente definições em ordem a se alcançar a melhor compreensão. Não se trata de uma tarefa hermética, mas sim de um saber progressivo e produtivo.
No discernimento entre o verdadeiro e o falso faz-se necessária uma abertura ao debate sem agressividade. O entendimento sobre questões relativas à ciência e à sociedade demanda uma reverência e humildade argumentativa. Igualmente, no campo político, importa superar limitações focadas em pontos cardeais ideológicos, posicionando-se em torno de ideias que permitam à sociedade avançar e debater consigo mesma. E, ressalte-se, debater não é um duelo, mas uma construção de uma dialética contínua de teses e antíteses, na melhor acepção hegeliana. Onde o orgulho prepondera, desfalece a razão. Sócrates, com toda a sua sabedoria, afirmava que nada sabia. A consciência da limitação do indivíduo é um passo redentor na busca pelo conhecimento. O crescimento pessoal é o objetivo de todos e requer humildade, autocrítica, fraternidade e perseverança.
Nos últimos anos o desenvolvimento da inteligência artificial tem crescido em escalas exponenciais. Todavia, os computadores são limitados em regras e lógica, de modo que carecem da criatividade e inovação que um ser humano pode proporcionar. O potencial humano destoa de qualquer software ou robô. Os elementos sensíveis que justamente individualizam a natureza humana devem convergir para a formação de uma comunidade socialmente e solidariamente inteligente. É tempo de rompermos com a involução cognitiva e ousar aprofundar no crescimento existencial para prosseguirmos na construção de uma sociedade pacífica e pautada na busca pelo conhecimento e bem-estar coletivo.
Fernando Procópio Palazzo é advogado especialista em Criminologia e Política Criminal.