O objetivo deste artigo é buscar identificar, a partir das perspectivas constitucionais e do Estado de Direito, como as alterações na Lei de Improbidade Administrativa propostas no Congresso Nacional podem representar um severo e gravoso retrocesso no combate aos atos de corrupção e, consequentemente, um revés para a consolidação dos direitos reconhecidos como fundamentais. Nessa mesma perspectiva, verificaremos dois aspectos que nos parecem relevantes: 1. Existe uma distorção brasileira no que se refere ao garantismo dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal? Em que contexto fático e em quais condições de bastidores foram determinadas as alterações legislativas na Lei de Improbidade Administrativa? 2. Afinal, no mérito, as alterações aprovadas na Câmara dos Deputados são positivas ou negativas, ou seja, apresentam retrocessos ou avanços?
Inicialmente, cumpre recordar que o fenômeno da corrupção se apresenta de forma generalizada no sistema político brasileiro, atingindo relações de poder – privadas e públicas – dos mais variados esquemas e formas, muitas das quais “legalizadas” por meio da formalização de textos legais aprovados no interesse de grupos mafiosos e criminosos. Embora seja a corrupção um fenômeno global, os padrões prometidos pela modernidade parecem não ter vigor e vez no Brasil. A tentativa do Estado Democrático de Direito, de viés garantista e constitucional, com a distorção singular e única em relação ao primeiro, transformou-se em mera representação cênica, uma grande peça teatral sem limites, vergonhas ou consequências.
Como é de conhecimento, no Estado Democrático de Direito a norma deveria ficar obrigatoriamente vinculada a uma instância jurídica constitucional superior, possibilitando a transformação do Estado de Direito – quando débil e ineficiente – em verdadeiro instrumento de garantias sociais, legitimada a atuação no ordenamento constitucional, uma vez sistematizado normativamente a partir da definição de garantias jurídicas e políticas. Esses direitos fundamentais, portanto, passam a ser considerados como a base sólida para edificação das estruturas democráticas modernas, implicando implementação daqueles direitos na própria razão de ser do Estado, ou seja, em sua legitimidade.
Portanto, as características desses direitos fundamentais impõem limites e obrigações ao poder-dever de agir do Estado, que, a partir de um acordo entre indivíduos livres e iguais, solidificado em experiências historicamente universais, estabelece uma reserva de direitos intocáveis, viabilizando, todavia, a compatibilidade entre direitos e garantias individuais e direitos e garantias sociais. Um paradigma único com fundamento na teoria geral do garantismo.
A partir de uma organização estrutural de normas previamente definidas e hierarquizadas, devidamente conjugadas por meio de limitadores do exercício do poder político, busca um modelo ideal de gerência de poder que serve de parâmetro e de aval para atuação legítima do Estado. É o objetivo a ser alcançado na prática pelos Estados compreendidos como de Direito, que devem buscar sua razão no cumprimento de determinados valores universais, quais sejam, a dignidade humana, a paz social, a plena liberdade e a igualdade substancial.
Portanto, diversamente da distorção consolidada em terras tupiniquins por causídicos de plantão – que mudam seus argumentos fáticos e jurídicos conforme as necessidades da clientela –, o garantismo como teoria universal representa, ao mesmo tempo, o resgate e valorização da Constituição como documento constituinte da sociedade. Esse resgate constitucional decorre justamente da necessidade da existência de um núcleo jurídico irredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a forma e a unidade política das tarefas estatais, os procedimentos para resolução de conflitos emergentes, elencando os limites materiais do Estado, as garantias e direitos fundamentais e, ainda, disciplinando o processo de formação político/jurídico do Estado. Segundo Luigi Ferrajoli, “a história do constitucionalismo é a história desta progressiva ampliação da esfera pública dos direitos”.
Com a crise nacional de governabilidade e com a corrupção institucionalizada, presente uma distorção do conceito garantista, as alterações legais propostas na Lei de Improbidade Administrativa, longe de buscarem uma necessária e contínua evolução da adequação do ordenamento jurídico normativo, visam escamotear razões e interesses inconfessáveis, evidenciando-se uma clara divergência entre normatividade e efetividade. No garantismo à brasileira – único e singular –, o processo se transforma em instrumento de continuidade infinita/eterna e a legislação, como entrave para o deslinde de fatos e a punição dos responsáveis. O modelo garantista brasileiro é materializado por meio da própria contrariedade entre as normas inferiores e os princípios constitucionais ditos como fundamentais, além da incoerência entre prática real e comando normativo, resultando em impunidade, desmando, corrupção e total desrespeito à Constituição Federal.
Neste contexto, o resultado não poderia ser outro, a não ser uma grande tragédia. As alterações propostas são visivelmente negativas, representando um severo retrocesso no combate ao fenômeno da corrupção. Dito de outra forma, as alterações legislativas propostas legalizam a criminalidade, dificultando – ou mesmo impossibilitando – a punição de corruptores e de corruptos. O texto já aprovado na Câmara dos Deputados estabelece, dentre outras alterações, a punição de agentes públicos somente quando comprovada a intenção – dolo – do delinquente. O texto ainda modifica regras de punição, eliminando a perda do cargo caso o agente público não ocupe mais a função na qual praticou o ato ímprobo.
O prejuízo causado pela supressão de várias ações e circunstâncias típicas, objetivamente descritas como condutas de má governança, favorece a absolvição própria da dúvida decorrente da subjetividade. Absurdamente, também legaliza o nepotismo, possibilitando o cabide de empregos para parentes e afilhados (este último já revisto em substitutivo). O envolvimento de Tribunais de Contas e o incentivo à ocorrência dos prazos prescricionais decorrentes de novas regras processuais só reforçam a impunidade materializada em “processos sem a possibilidade de fim”. Diante da gravidade da situação imposta, resta mobilizar a sociedade brasileira para que exija uma revisão drástica do texto no Senado Federal. Caso isso não ocorra, as consequências negativas serão dantescas.
Affonso Ghizzo Neto é promotor de Justiça, doutor pela Universidade de Salamanca e idealizador da campanha “O que você tem a ver com a corrupção?”.
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