Paul Ricoeur desmonta a armadilha da neutralidade na ação humana. Em um texto da década de 1980, Interpretação e ideologia, o filósofo francês afirma ser aterrador o que se diz sobre ideologia, mas é especialmente grave quando se pretende dizê-lo de um lugar não ideológico. A intenção de avaliar quaisquer assuntos a partir de um ponto neutro é um equivoco datado: origina-se no início da filosofia moderna e encontra no pensador René Descartes o estereótipo mais conhecido. A dúvida metódica encarna perfeitamente essa busca pelo lugar seguro para a pesquisa da verdade.
Eis um ponto pacífico na filosofia prática: não há neutralidade na ação humana. Contrariando a perspectiva cartesiana, não há alternativa à adoção de um absoluto para a vida. Segundo Ricoeur, é necessário abandonar qualquer esperança de um lugar neutro, de onde se analise a ação humana sem influências que encaminhem para questões de princípio. Em momentos de crise, as opiniões tendem naturalmente a um absoluto positivo, com claro teor metafísico, ou para um absoluto negativo, igualmente metafísico, pois não há comprovações físicas de sua inexistência.
Eis um ponto pacífico na filosofia prática: não há neutralidade na ação humana
De fato, o ativista ateu engajado não admite a afirmação de que por detrás de cada atitude existem pressupostos absolutos. Ele reclama para si a possibilidade de um local neutro, algo como um limbo de absoluto, onde estaria isento e protegido dos erros comuns e construiria para si uma cidade humana, demasiadamente humana, expurgando todo tipo de absoluto da discussão pública. Ingênuo, não percebe que a negação de qualquer absoluto é igualmente a recolocação de um novo absoluto, mas dessa vez de um absoluto negativo.
O proselitista teísta radical, por sua vez, rejeita a ideia de que por detrás de cada princípio absoluto há a individualidade e a liberdade do sujeito. Ele reclama para si o direito de julgar cada indivíduo a partir da neutralidade oferecida pelo princípio, o qual – segundo sua visão simplista – independe de circunstâncias e psicologias. Afobado, não percebe que a existência do absoluto não admite qualquer tipo de neutralidade na vida prática, jogando suspeitas sobre cada decisão concreta de cada indivíduo.
É o absolutismo teísta rouco que aperta gatilhos em boates e usa caminhões como armas; e é o absolutismo ateísta surdo que deseja expurgar da vida pública quaisquer discursos metafísicos, impondo-lhes a censura de um silêncio “democrático” e reduzindo alguns a cidadãos de segunda classe. Para arrepio dessa última trupe, porém, Jürgen Habermas, que não pode ser acusado de crente sem causar escândalo, defende o direito de os cidadãos se manifestarem na pólis segundo seus próprios critérios, não segundo o critério daqueles que são seus opositores.
Não se trata de manter ou de rejeitar princípios absolutos. Eles são indevassáveis. Ou não está claro que negar todo absoluto é colocar-se a si próprio na posição de absoluto real? O caso do teísta assassino ou do ateísta judicialista nem sequer toca na questão da necessidade de um absoluto. Essas tragédias tratam tão somente de escancarar a face extrema da intolerância. E a intolerância não reconhece direita nem esquerda. A intolerância prefere a mão dupla e acostumou-se, há muito tempo, a ser ambidestra.
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