Estrada inundada em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS).| Foto: EFE/Isaac Fontana
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Tenho uma forte ligação com o estado do Rio Grande do Sul (RS), que vem desde a época que ali vivi, cerca de cinco décadas atrás, participando do Convênio IICA/OEA-IBRA, visando levantamento socioeconômico e dos recursos naturais do estado. Na ocasião, tive a rara oportunidade de percorrer todo o território gaúcho, indo do extremo noroeste, municípios Tenente Portela, Três Passos, Frederico Westphalen etc., até a região da Lagoa Mirim, municípios de Jaguarão, Arroio Grande, Herval etc., no extremo sudeste. Esses deslocamentos deixaram na memória a imagem de uma geomorfologia muito particular, que praticamente divide o RS no meio: uma parte elevada, o Planalto Meridional, e outra parte baixa, Campanha, Depressão Central, Planície Costeira e as pequenas elevações do Escudo Cristalino.

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Uma ideia da paisagem de transição do Planalto Meridional para a parte baixa, avançando por uma faixa intermediária com colinas e contrafortes que o sucedem, no sentido norte – sul, é a deslumbrante vista do Morro Pelado em Canela. Quando a transição é mais abrupta, tem-se as formações dos “Aparados da Serra.”

No caso do RS, a ação humana poderia ter atenuado as enchentes e inundações
mediante intervenções ao longo do Rio Jacuí.

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Este formato geomorfológico e a rede hidrográfica que ele determina estão na raiz das causas das inundações, tanto a atual como a ocorrida, quase nas mesmas proporções, em maio de 1941. A hidrografia do RS sinaliza claramente para a predominância de uma confluência leste-sul no sentido do Oceano Atlântico com destaque para a Bacia do Rio Jacuí, que desagua no Guaíba.

Os processos de urbanização e de implantação da infraestrutura de transporte ao longo dos anos em toda a Bacia do Jacuí tornaram a foz do Guaíba mais vulnerável, inclusive a inundações. Curiosamente em 1941, quando não havia o pânico do aquecimento global e quando não havia o IPCC (Intergovernmental Panelon Climate Change) medindo a temperatura média do planeta, aconteceram inundações semelhantes, dando razão aos que defendem a ciclicidade dos fenômenos climáticos, como inundações, e maior determinação de fatores cósmicos ou independentes da ação humana, no comportamento do clima do planeta. Não se nega que o homem pode contribuir para mudar o clima, sobretudo ao nível micro.

Mas grandes influências já foram afastadas pelo documento intitulado There Is no Climate Emergency, publicado em 2023 pelo Global Climate Intelligence Group, com assinatura de mais de 1.400 pesquisadores, alguns deles laureados como Prêmio Nobel. Ação antrópica está longe de ser uma determinante de última instância, para usar uma categoria althusseriana. Portanto, não pode ser vista como algo diferente de uma prova de indigência mental, o argumento da atual ministra de Meio Ambiente de que a causa da inundação da Grande Porto Alegre e demais municípios atingidos foi o “apagão ambiental” do governo passado.

No caso do RS, a ação humana poderia ter atenuado as enchentes e inundações mediante intervenções ao longo do Rio Jacuí, em seus trechos Alto e Baixo, que levam para o Guaíba, praticamente, toda a vazão agregada com origem no Planalto Meridional e na Depressão Central. Sucede que a quase totalidade dos rios que nascem nas partes altas vertem no sentido Sul e Leste, confluindo para o Baixo Jacuí, e a totalidade dos rios que nascem na Depressão Central, confluem para Médio Rio Jacuí, tudo somado vertendo para o Guaíba, já na Grande Porto Alegre. Menos de 15% dos rios com nascentes nas partes altas são afluentes do Rio Pelotas, que limita o RS de Santa Catarina, e do Rio Uruguai, que tem seu curso no limite oeste do estado. Ou seja, os escoamentos vêm todos no sentido leste-sul, sobrecarregando o Jacuí.

Um hipotético retângulo ligando com linhas imaginárias as longitudes de 50º, 34' W e 54º W e as latitudes de 28º S e 29º, 50' S, definiria a área hídrica tributária do Guaíba correspondendo cerca de 40% do território do RS, o que pode parecer uma anomalia, uma desproporção, mas que foi um capricho da natureza. Quando somado a essa condição física que engloba toda a bacia do Jacuí se tem uma conjunção desfavorável, com a presença forte da zona de calor (cíclica e normal consequência de El Niño) bloqueando as chuvas vindas do sul, dão-se as condições ideais para precipitações anômalas, em curto período, com um grande volume de água escoando para as partes mais baixas da bacia Jacuí-Guaíba. Ventos, forte intrusão da língua salina e estrangulamento da foz da Lagoa dos Patos à altura de Rio Grande, compuseram o quadro ideal para elevação do nível das águas e todo transbordamento na Grande Porto Alegre e no sentido de montante, em direção à Canoas e outros municípios.

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Não houve historicamente orientação em distanciar o tecido urbano do Rio Jacuí e nem houve preocupação em construir centenas de barramentos à montante, praticamente dotando cada afluente do Rio Jacuí, seja no Planalto Meridional ou na Depressão Central, de duas a três barragens. Rogério Porto, um geólogo bastante conhecido no RS, elaborou uma proposta semelhante quando trabalhava no governo de Yeda Crusius. Tudo indica que nada evoluiu. Há versões que mais tarde o assunto tenha voltado à baila, com solicitação de investimento público federal, durante o 2º governo de Lula, tendo sido descartado pela então ministra do Planejamento, Dilma Rousseff, por implicar em elevados investimentos. Vamos torcer para que as ideias de Rogério agora saiam da gaveta.

Amilcar Baiardi é engenheiro agrônomo e pesquisador, professor aposentado da UFBA e da UFRB, membro da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e da Academia de Ciências da Bahia, atuando na pós-graduação da Universidade Católica do Salvador.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]