Prisioneiros de guerra ucranianos chegam em um local não revelado perto da fronteira com a Rússia| Foto: EFE/EPA/PRESIDENTIAL PRESS SERVICE
Ouça este conteúdo

Na semana que antecedeu a invasão russa, em fevereiro de 2022, a Deutsche Welle produziu uma reportagem a respeito das tensões na fronteira oriental ucraniana. As pessoas entrevistadas pela repórter garantiam estar tudo normal e sustentavam não ter visto nenhum tanque russo desfilando ameaçadoramente. Funcionários do Instituto Ucraniano de Humanidades, em Butcha, que voltavam da casa de parentes na região leste, também reforçaram essa percepção. Tais fatos corroboraram a denúncia do jornal Ukrains’ka Pravda, de Kyiv, de que o ditador Vladimir Putin manipulava as informações.

CARREGANDO :)

A mídia internacional, políticos e arrogados especialistas ainda fazem o público acreditar em uma invasão por motivos políticos, étnicos, econômicos, quando na realidade a guerra promovida pela Rússia engloba todas essas razões sob a égide da questão religiosa alimentada pelo líder da Igreja Ortodoxa Russa e os interesses da indústria bélica, majoritariamente ocidental. Acrescente-se à lista de potências delinquentes os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), pois a eles interessa a expansão do poder militar no Leste europeu e a venda de armas no conflito envolvendo Rússia, Ucrânia e, eventualmente, Belarus, Geórgia, Azerbaijão e Armênia.

Os tensos discursos no contexto externo têm uma face, enquanto as diferenças internas apresentam outro contorno. Tranquilos, os ucranianos não se deixaram abater sequer pelo coronavírus. A vida seguiu normalmente, com as autoridades optando por salvar a economia e não interferir no bolso dos cidadãos. Afinal, a maior parte da Ucrânia rejeitou a vacinação e acusou a China, Estados Unidos, Rússia e quem mais os apoiasse, de conspiração contra a humanidade.

Publicidade

Muito mais devastadores para a saúde pública são os efeitos do alcoolismo e do tabagismo, principalmente o eletrônico entre os jovens (proibiu-se no Brasil, mas na Ucrânia se transformou em praga, cujas consequências fatalmente emergirão em uma década). Celeiro da Europa, o primeiro desafio era sobreviver ao inverno com pouco gás, boicotado pela Gazprom, gigante russa da energia.

Em uma missa proferida na Catedral de São Basílio, no Kremlin, em Moscou, em 20 de fevereiro de 2022, pelo arquimandrita Cirilo I (Kirill), o líder da Igreja Ortodoxa Russa se dirigiu a Putin, designando-o como “o homem de Deus para este tempo” e a missão de “resgatar o patrimônio espiritual” em Kyiv. Em 1992, ocorreu um rompimento nas entranhas da Igreja Ortodoxa Ucraniana, surgindo o movimento autocéfalo da Igreja Ortodoxa Autônoma Ucraniana, liderada por Volodymyr Romaniuk, primeiro patriarca de Kyiv. Com a morte de Romanyuk, Filareto Denisenko assumiu a primazia. Cinco anos depois, a Igreja Ortodoxa Russa excomungou todos os clérigos do Patriarcado de Kyiv.

Em 2018, o Patriarcado de Constantinopla suspendeu as ações russas contra as Igrejas Ortodoxas Autocéfala e Ucraniana do Patriarcado de Kyiv, surgindo a Igreja Ortodoxa da Ucrânia. No início do ano seguinte, concretizou-se o cisma da Igreja Ortodoxa da Ucrânia em relação à Igreja Ortodoxa Russa, ato referendado pelo patriarca ecumênico de Constantinopla. Isso enfureceu Cirilo I.

A Ucrânia vivia, antes da guerra, o cenário de liberdade religiosa em um Estado laico e democrático. Já a Rússia centralizava as ações no presidente, subserviente às influências religiosas, militares e oligárquicas.

Enquanto a Ucrânia é um país semipresidencialista, liderado pelo presidente, primeiro-ministro e presidente do parlamento (Rada), a Rússia é liderada pelo presidente, primeiro-ministro, presidente do Conselho da Federação, presidente do parlamento (Duma) e pelo arquimandrita da Igreja Ortodoxa. A Ucrânia vivia, antes da guerra, o cenário de liberdade religiosa em um Estado laico e democrático. Já a Rússia centralizava as ações no presidente, subserviente às influências religiosas, militares e oligárquicas.

Publicidade

Para Cirilo I, Putin precisava purificar a Ucrânia dos infiéis, referindo-se ao presidente Volodymyr Zelenskyi e ao primeiro-ministro Denys Shmygal, ambos de origem judaica. No dia seguinte à missa, o Noticias 60 publicou imagens de religiosos ortodoxos abençoando os militares antes de partirem para a guerra. No dia anterior, a repórter Elena Roshtchyna, do Ukrains’ka Pravda, revelou um documento divulgado pela CIA com nomes de pessoas que deveriam ser assassinadas durante a invasão. No topo da lista, sobressaía-se o presidente e o primeiro-ministro, políticos, militares, empresários, depois os opositores russos, dissidentes russos e bielorrussos no exílio, jornalistas, ativistas anticorrupção e líderes de minorias religiosas.

Um relatório especial da ONU sobre liberdade religiosa e preconceito contra minorias denuncia as acusações de espionagem levantadas pelas autoridades russas contra os testemunhas de Jeová e mórmons no Donbass, região oriental ucraniana. Para a invasão, Putin contou com o apoio de unidades tchetchenas lideradas por Ramzan Kadyrov, filho de um mufti, intérprete do Alcorão. As tropas treinadas pelo chefe tribal da Tchetchênia se tornaram conhecidas por sequestros, atentados terroristas, assassinatos e perseguição contra cristãos de todas as vertentes. Os kadyroves invadiram o Aeroporto Antonov, em Hostomel, seguiram para as vizinhas Butcha e Irpin, sendo impedidos de entrar na capital para chegar ao Palácio Mariyinskyi, sede presidencial. Em Butcha, os tchetchenos cometeram um dos maiores crimes de guerra, deixando corpos pelas ruas e enterrando outros em valas no terreno ao lado da Igreja Ortodoxa Apóstolo Santo André.

A alegação russa de livrar a Ucrânia do nazismo não se insere como narrativa em um discurso inédito, mas se ajusta a séculos de espoliação e justificativas falsas para escravizar o povo ucraniano. Em primeiro lugar, não há como determinar o rótulo de “nazista” para um país liderado por descendentes de judeus. O próprio histórico de invasões, submissões e massacres se mesclou à palavra “eslavo”, incorporada com outro significado na maior parte das línguas ocidentais.

A superfície do atual território ucraniano é recente, assemelhando-se às áreas conjuntas dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Nunca chegou a ter esse tamanho. Séculos atrás, mais de uma dezena de tribos ou enclaves habitavam essas terras no Leste europeu. Hordas mongóis, otomanas, russas, lituanas, polonesas, austro-húngaras, romenas e de alemães nazistas se revezaram e atormentaram os ucranianos ao longo de mais de um milênio.

No primeiro terço do século 18, havia mais escravos brancos no mundo do que de origem africana, cujo avanço se deu quando se descobriram as minas de ouro e prata nas colônias espanholas e lusitanas na América. A escravidão de brancos, principalmente dos territórios onde viviam os povos ucranianos, se devia às dívidas, por nascimento em uma família de vassalos e também por causa de sequestros, invasões e guerras. Milhares de mulheres e crianças raptadas rumaram para as regiões do império otomano, desde a atual Turquia até os confins da península arábica, para os haréns de sultões, emires, xeques e califas. A partir desse fato, associou-se a escravidão ao termo “eslavo”, presente inclusive em outros idiomas, como o inglês (slave), o francês (esclave), diferentes do latino “servus”.

Publicidade

Aproveitando-se da queda da monarquia russa, os ucranianos proclamaram a independência, criando cinco estados autônomos entre 1917 e 1920. Todavia, em decorrência da organização e expansão da União Soviética, os comunistas incorporaram os territórios ucranianos ao império bolchevique, eliminando gradativamente as liberdades de imprensa, consciência, reunião religiosa e propriedade, provocando inclusive a grande fome de 1932-33 (Holodomor), quando Stalin protagonizou o assassinato de mais de dez milhões de ucranianos. As organizações religiosas deixaram de se agrupar na superfície e passaram a cultuar às escondidas, transformando-se em muitas denominações subterrâneas. Décadas adiante, receberam autorização para abrir congregações, muitas delas dirigidas por clérigos líderes colaboradores indicados pelos poderes públicos, destacando-se a polícia secreta.

O nível da atividade missionária cristã parece normal, com alguma restrição ao proselitismo público, mas aberto aos meios digitais, como internet, redes sociais, TV e rádio. É comum várias religiões participarem juntas de eventos públicos, tais como o Dia de Ação e Graças Ucraniano no terceiro domingo de setembro, o Natal católico de 25 de dezembro, o Natal ortodoxo de 7 de janeiro e a Páscoa no último domingo de março. À frente da organização e apresentações do Dia de Ação e Graças, geralmente em um palco instalado no centro da capital, o Telekanal Nadiya (do ucraniano, “Esperança”), a Hope Channel liderada pelo pastor Maksym Krupskyi, comanda a celebração.

Assim como no Ocidente, há cultos nas igrejas protestantes, missas nas igrejas católica e ortodoxa, cerimônias judaicas nas sinagogas. O grego Cirilo introduziu o cristianismo entre os povos eslavos no 9º século. Ele criou o alfabeto cirílico, especialmente para esse território divisório entre norte e sul, leste e oeste, ao mesmo tempo em que compartilhava o evangelho. Do eslavônico, o termo Ucrânia, que deu nome ao país, significa “terra de fronteira”.

Antes da guerra com a Rússia, 50,4% dos ucranianos se declaravam da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kyiv; 26,1% da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscou; 8% da Igreja Greco-Católica Ucraniana; 7,2% da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana; 2,2% da Igreja Católica Apostólica Romana; 2,2% de protestantes; 0,6% do judaísmo; e 3,3% de outras tendências. Em decorrência da invasão russa e da dispersão de ucranianos pelo mundo, principalmente pela Europa Ocidental, cresceu o número daqueles que se declaram ortodoxos ucranianos, diminuindo os adeptos do Patriarcado de Moscou. A influência marxista dos tempos soviéticos continua estimulando o aumento de ateus ou sem religião, hoje em 7%.

Preocupado com a expulsão de religiosos da Igreja Ortodoxa da Ucrânia que permaneceram fiéis a Moscou no disputado Monastério das Grutas de Kyiv, um dos patrimônios a serem resgatados por Putin, o patriarca Cirilo I apelou ao papa Francisco, ao secretário-geral da ONU, Antonio Guterres e à comunidade internacional para intervirem. Segundo o religioso russo, “direitos humanos e as liberdades estão sendo violados de maneira escandalosa” pelos ucranianos, ignorando as práticas genocidas cometidas pelos compatriotas.

Publicidade

Há quem suspeite de futuras restrições às liberdades, independente de quem vença o conflito. O teólogo ucraniano Taras Dzyubanskyy, da Universidade Católica da Ucrânia, acusa a Igreja Ortodoxa Russa de se transformar em uma instituição terrorista e seu líder, Cirilo I, como patriarca militar que utiliza as armas para disseminar a violência e a opressão.

Ao se envolverem com a política durante o regime comunista, os membros das igrejas pagaram o preço da apostasia, traindo seus pares, abalando a confiança e provocando a imersão em reuniões subterrâneas, afastadas de olhares e ouvidos curiosos. Até hoje, as conversas de bastidores com pessoas de estrita confidência ainda fazem parte da herança cultural preventiva contra surpresas negativas, a fim de evitar o escândalo, artimanhas e maledicências.

As novas gerações que não vivenciaram esse período de medo discordam desses hábitos advindos das décadas de perseguição, mas respeitam e valorizam as experiências, tendo agora a oportunidade de se superar diante das adversidades sob o aconselhamento de quem conheceu o terror de perto.

Ruben Dargã Holdorf atuou como professor universitário e pesquisador na Ucrânia (2021-22).

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
Publicidade