Meus amigos e eu tentamos acampar às margens de um rio no norte da Califórnia todo verão, na esperança de fazer da viagem uma tradição. Nos últimos quatro anos, fomos para lá três vezes; neste ano, como o nível do Russian estava baixo, fomos um pouco mais para o oeste que de costume. No caminho, passamos por uma casa onde se via hasteada uma bandeira confederada. Meus amigos são brancos; eu, não.
É verdade que não me senti muito à vontade com o que vi, mas não achei que minha segurança estivesse em risco. Há um ano, talvez, não me sentiria assim.
Tinha acabado de voltar para a Califórnia, saído de El Salvador, onde vivera até os nove anos. Na carteira, levava o documento que me garantia o privilégio de não ter de me preocupar o tempo todo em ser parado, revistado, deportado.
A data impressa no meu green card, ou cartão de “Residente Permanente”, é 11 de julho de 2018, que sempre vai me lembrar dos Slurpees da 7-Eleven que costumava tomar. E o ano, que vai estar sempre associado ao longo verão da crueldade do governo Trump, das separações familiares. Um verão em que “Onde estão as crianças?” foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais.
E depois, mesmo com as crianças ainda separadas dos pais, todo mundo se esqueceu delas, ou das pessoas fugindo para salvar a própria vida, com a esperança que o país concedesse algum asilo.
Isso foi até poucas semanas; agora, poucos dias antes das eleições intermediárias, o presidente quer instilar o medo de uma caravana que representa “uma invasão no nosso país”, tão perigosa que ele teria de enviar milhares de soldados para interceptar os invasores na fronteira. E também levantou a ideia de que, apesar do que diz a Constituição, o nascimento no país não é garantia de cidadania, em uma manipulação cínica dos temores do norte-americano branco; o medo do “outro”. Vendo tudo isso na TV, eu me senti exatamente como nos meus primeiros dias aqui, em 1999: diferente, indesejado.
O que chega mais perto da definição da tal americanidade é a falsa sensação de segurança
E este é o país que me acolheu permanentemente.
Eu nasci em El Salvador, uma pequena nação na América Central de 6,5 milhões de habitantes, em uma cidadezinha perto do litoral, a meia hora do aeroporto. Uma guerra civil na qual os EUA investiram castigou o meu país durante mais de uma década, antes de finalmente “acabar” em 1992, quando eu já tinha dois anos. A taxa de homicídios ali é uma das mais altas do mundo. Meus familiares que continuam lá se referem a ela como “a situação”, ou seja, todo mundo se fecha dentro de casa às oito da noite por causa da “situação”; é a “situação” que não nos permite ir àquela parte da cidade. A “situação” forçou, está forçando e vai continuar a forçar centenas de salvadorenhos para outros países. Uma caravana saiu da capital na quarta passada.
Meu pai foi embora em 1991 por causa da guerra; minha mãe o seguiu três anos depois. Eu fui encontrá-los, sozinho, em 1999. Não entendia o que era a fronteira, nem o que representava legalmente; só o que eu sabia era que queria voltar a ficar com meus pais e poder abraçá-los.
Encontrei policiais corruptos na Guatemala, fiquei na mira de fuzis M-16 no México, um fazendeiro no Arizona também me apontou uma arma. O grupo com que eu viajava foi rastreado, seguido por helicópteros. A fronteira sempre foi fortemente militarizada; as caravanas existem simplesmente porque é mais seguro andar em bando.
Antes de onze de julho, eu já recebera o Status de Proteção Temporária com que Trump quer acabar, mesmo depois de um juiz ter decidido que deve permanecer válido. Como o nome diz, é um benefício transitório, ou seja, não é alternativa para a cidadania; entretanto, eu me dediquei feito louco, fui bem na escola, fiz faculdade, tornei-me escritor, publiquei vários trabalhos, escrevi um livro, ganhei algum prestígio. Fiz isso sabendo o tempo todo que cada nota, cada avaliação, cada redação, cada poema seriam provas sobre o meu “valor” para aqueles que fossem me julgar. Aparentemente foi suficiente para que eu obtivesse o visto de Habilidade Excepcional Baseado em Emprego (EB-1), e depois o green card.
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Querendo ou não, vivo a dicotomia exaustiva e desumanizadora da narrativa do bom x mau imigrante. Se fosse mal na escola, ou não aprendesse inglês com rapidez, estaria fazendo o que era esperado de mim, ou seja, não cumprir nem o mínimo; se me destacasse, seria um dos “bons”, um dos imigrantes que geram espanto e perguntas do tipo: “Mas por que não lhe dão os papéis de uma vez?”.
Na etapa final do processo de obtenção do green card eu teria de voltar a El Salvador, aonde não ia há 19 anos, para fazer um exame médico completo e uma entrevista na embaixada. Em outras palavras, para conquistar o direito legal de permanecer nos EUA, eu teria de voltar ao país do qual fugi aos nove anos. Fui acordado por disparos cinco vezes durante o mês que fiquei lá.
Enquanto ainda estava em El Salvador, em junho, a política que separa as crianças de seus pais estava a todo o vapor na fronteira. Eu estava hospedado na casa do meu avô. Um dia, achei por bem checar meus e-mails, coisa que não fazia há dias. Vi que alguém enviara o link para uma notícia: “Temos uma orquestra aqui”, foram as palavras de um patrulheiro fronteiriço na gravação divulgada pelo ProPublica.org. Eu sabia que não devia abrir, mas o fiz mesmo assim. Meu avô, que tinha saído para fazer compras, estava voltando com tamales de elote – semelhante à pamonha, feijão e queijo fresco. Por algum motivo, nunca me deixa ir junto ao mercado. O choro de uma garotinha e o de outras crianças na gravação tiveram o efeito da chuva mais fria, que ainda não parou. Meu peito, apertado, não encontra alívio desde então.
No rio Russian, aproveitando o fim do verão, com o green card na carteira, meus amigos questionam a definição de “americanidade”. Tentamos estipular alguns conceitos, mas nenhum parecia abrangente o bastante.
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Eu me lembro de ficar esperando meu número ser chamado na embaixada norte-americana em San Salvador. G44. Havia três flechas pintadas no chão, levando o público da rua para as cabines de entrevista: uma verde, para os que requisitaram o green card; uma roxa, para os turistas; uma amarela, para os outros. Segui a primeira, que me levou a uma sala de espera, de onde podia ver os outros requerentes se dirigindo aos funcionários. Esperei uma hora, depois outra, até o G44 ser chamado. Tentei me manter calmo enquanto via gente discutindo com os funcionários ou simplesmente saía chorando do prédio, seguindo as mesmas linhas coloridas que tinham usado para se guiar na entrada, horas antes. Supus que todos tinham tido seus pedidos negados e fiquei imaginando quantos tentariam entrar no país por outros meios.
É estranho lidar com a boa notícia do meu visto, e agora a residência permanente, ao mesmo tempo em que Trump sobe o tom da retórica anti-imigração. Só poderei votar quando me tornar cidadão, o que talvez leve, no mínimo, mais cinco anos.
Acho que o que chega mais perto da definição da tal americanidade é a falsa sensação de segurança. Com o tal cartão no meu bolso, eu deveria me sentir mais seguro, mas não é o que acontece – não quando subiu o número de estrangeiros legais barrados pelo Departamento de Imigração e Alfândega, não quando o próprio presidente põe em dúvida a 14.ª Emenda. Está sendo muito difícil aceitar que, de certa forma, me beneficiei do “sonho americano”, qualquer que seja significado disso nos dias de hoje.
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