Imagem ilustrativa.| Foto: Pixabay
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“Ai palavras, que estranha potência a vossa”, cantou Cecília Meireles no seu Romanceiro da Inconfidência. Ela tinha toda razão: é realmente incrível o poder das palavras. Algumas delas, por exemplo, se incrustam nas identidades nacionais de tal forma que seus significados passam a fazer parte da ação cotidiana de todos os cidadãos. Esse é o caso do polêmico "jeitinho brasileiro”, cuja referência é dupla (e, por isso mesmo, dúbia): de um lado, refere-se àquilo que eu vou chamar aqui de “a arte dos contornos” para qualificar a capacidade que nos é própria de se adaptar às circunstâncias, usando algum tipo de arcano “charme” que Sérgio Buarque de Holanda chamou de cordialidade – a arte de agir de acordo com preferências afetivas. E é precisamente aí que o tal “jeitinho” se torna um problema, porque é este mesmo autor que demonstrou que tal coisa pode ser também quase uma ausência de civilidade e, por isso, um risco aos costumes mais imprescindíveis ao ordenamento democrático.

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Nesse segundo caso, dar um “jeitinho” equivale não a uma arte ou a uma qualidade, mas a um vício funesto e a um desvio de caráter, na medida em que contorna as leis e as normas, apelando sempre para a flexibilidade, a negociação, a barganha e a famosa lábia, que geralmente são mães da corrupção, que se agrava ainda mais quando envolta pelo manto sagrado da impunidade. O jeitinho, afinal, é um modo de agir que dispensa os rigores cogentes da vida em sociedade e promove o individualismo que quer tirar vantagem em tudo, sem nenhum compromisso com o bem comum, que é, antes de qualquer coisa, a meta da política, como arte de viver em conjunto.

O mundo está cheio de oportunidades para o jeitinho e há apenas um jeito de evitarmos que ele contamine nossas vidas até quando não seja mais possível recuar: levarmos uma vida virtuosa.

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O jeitinho, por isso, não sendo apenas uma prática que encobre os pequenos delitos cotidianos e as divertidas pilantragens que pululam aqui e ali, torna-se um risco cuja gravidade coloca em xeque a vida política como um todo: como afirmou o filósofo Ortega y Gasset, sem uma ideia consistente de bem comum, uma nação fica invertebrada e vai ao chão, desintegrada.

Há quem critique esse mal tipicamente brasileiro em tom espumoso, vendo, contudo, quase exclusivamente o que fazem os outros, especialmente os governantes, ao tempo em que fecham os olhos – “tapar o sol com a peneira” pode ser a versão corriqueira do “jeitinho” – para as suas próprias delinquências: o dano da coisa pública, a sonegação dos impostos, o desrespeito às filas e aos sinais de trânsito, as palavras de ódio contra as minorias etc.

Como escreveu Aristóteles, “o homem tem muitas maneiras de ser mau e apenas uma maneira de ser bom” e esta maneira é a prática das virtudes. O mundo está cheio de oportunidades para o jeitinho e há apenas um jeito de evitarmos que ele contamine nossas vidas até quando não seja mais possível recuar: levarmos uma vida virtuosa, que inclui a prática da honestidade e o compromisso com o bem comum. E, ao contrário do que se pensa, isso não tirará o otimismo e a alegria tropical que trazemos do berço e nem esgotará o afeto que azeita nossas atitudes – ao contrário, seremos mais felizes apenas na medida em que nos realizarmos plenamente junto com os outros, obedecendo as regras que nós formulamos juntos, democraticamente.

Por essas e outras, não acho a expressão apenas lastimável como, sobretudo, perigosa, na medida em que, pronunciada assim, sem pompa, ela passa à corrente sanguínea da sociedade e passa a definir o caráter e os (des)valores de nossa gente. O “brasileiro” que adjetiva o tal “jeitinho” não é mais do que uma suposição estrangeira (lembremos que a expressão, ao que consta, teria sido usada na década de 1940 por um imigrante que driblou a imigração para conseguir um visto de entrada em nosso país) e, nesse caso, fruto de um contexto específico. Usá-la para caracterizar um povo não faz sentido algum e muito menos que esse povo a use para descrever a si mesmo.

Tal é a gravidade: quando nós, como povo, nos referimos a nós mesmos como pessoas sem caráter e sem valores, não apenas tecemos um comentário infeliz, como, com ele, passamos a autorizar os pequenos delitos cotidianos como se fossem inevitáveis e sem remédio. Afinal, esse é o nosso “jeito” de ser, o modo como nós organizamos a nossa vida nesse quinhão de terra que nos cabe habitar.

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Sinceramente, nós, brasileiros e brasileiras, merecemos mais do que isso. Os cientistas sociais que me perdoem, mas não somos um povo sem ética mais do que é sem ética qualquer outro povo do mundo. O “jeitinho”, afinal, não é brasileiro, mas é humano. Usar uma expressão desse quilate contra nós mesmos, é só uma prova da baixo autoestima que gostamos de cultivar e, ao mesmo tempo e acima de tudo, uma medida psicológica que autoriza os delinquentes a (quase) tudo.

Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]