“Ai palavras, que estranha potência a vossa”, cantou Cecília Meireles no seu Romanceiro da Inconfidência. Ela tinha toda razão: é realmente incrível o poder das palavras. Algumas delas, por exemplo, se incrustam nas identidades nacionais de tal forma que seus significados passam a fazer parte da ação cotidiana de todos os cidadãos. Esse é o caso do polêmico "jeitinho brasileiro”, cuja referência é dupla (e, por isso mesmo, dúbia): de um lado, refere-se àquilo que eu vou chamar aqui de “a arte dos contornos” para qualificar a capacidade que nos é própria de se adaptar às circunstâncias, usando algum tipo de arcano “charme” que Sérgio Buarque de Holanda chamou de cordialidade – a arte de agir de acordo com preferências afetivas. E é precisamente aí que o tal “jeitinho” se torna um problema, porque é este mesmo autor que demonstrou que tal coisa pode ser também quase uma ausência de civilidade e, por isso, um risco aos costumes mais imprescindíveis ao ordenamento democrático.
Nesse segundo caso, dar um “jeitinho” equivale não a uma arte ou a uma qualidade, mas a um vício funesto e a um desvio de caráter, na medida em que contorna as leis e as normas, apelando sempre para a flexibilidade, a negociação, a barganha e a famosa lábia, que geralmente são mães da corrupção, que se agrava ainda mais quando envolta pelo manto sagrado da impunidade. O jeitinho, afinal, é um modo de agir que dispensa os rigores cogentes da vida em sociedade e promove o individualismo que quer tirar vantagem em tudo, sem nenhum compromisso com o bem comum, que é, antes de qualquer coisa, a meta da política, como arte de viver em conjunto.
O mundo está cheio de oportunidades para o jeitinho e há apenas um jeito de evitarmos que ele contamine nossas vidas até quando não seja mais possível recuar: levarmos uma vida virtuosa.
O jeitinho, por isso, não sendo apenas uma prática que encobre os pequenos delitos cotidianos e as divertidas pilantragens que pululam aqui e ali, torna-se um risco cuja gravidade coloca em xeque a vida política como um todo: como afirmou o filósofo Ortega y Gasset, sem uma ideia consistente de bem comum, uma nação fica invertebrada e vai ao chão, desintegrada.
Há quem critique esse mal tipicamente brasileiro em tom espumoso, vendo, contudo, quase exclusivamente o que fazem os outros, especialmente os governantes, ao tempo em que fecham os olhos – “tapar o sol com a peneira” pode ser a versão corriqueira do “jeitinho” – para as suas próprias delinquências: o dano da coisa pública, a sonegação dos impostos, o desrespeito às filas e aos sinais de trânsito, as palavras de ódio contra as minorias etc.
Como escreveu Aristóteles, “o homem tem muitas maneiras de ser mau e apenas uma maneira de ser bom” e esta maneira é a prática das virtudes. O mundo está cheio de oportunidades para o jeitinho e há apenas um jeito de evitarmos que ele contamine nossas vidas até quando não seja mais possível recuar: levarmos uma vida virtuosa, que inclui a prática da honestidade e o compromisso com o bem comum. E, ao contrário do que se pensa, isso não tirará o otimismo e a alegria tropical que trazemos do berço e nem esgotará o afeto que azeita nossas atitudes – ao contrário, seremos mais felizes apenas na medida em que nos realizarmos plenamente junto com os outros, obedecendo as regras que nós formulamos juntos, democraticamente.
Por essas e outras, não acho a expressão apenas lastimável como, sobretudo, perigosa, na medida em que, pronunciada assim, sem pompa, ela passa à corrente sanguínea da sociedade e passa a definir o caráter e os (des)valores de nossa gente. O “brasileiro” que adjetiva o tal “jeitinho” não é mais do que uma suposição estrangeira (lembremos que a expressão, ao que consta, teria sido usada na década de 1940 por um imigrante que driblou a imigração para conseguir um visto de entrada em nosso país) e, nesse caso, fruto de um contexto específico. Usá-la para caracterizar um povo não faz sentido algum e muito menos que esse povo a use para descrever a si mesmo.
Tal é a gravidade: quando nós, como povo, nos referimos a nós mesmos como pessoas sem caráter e sem valores, não apenas tecemos um comentário infeliz, como, com ele, passamos a autorizar os pequenos delitos cotidianos como se fossem inevitáveis e sem remédio. Afinal, esse é o nosso “jeito” de ser, o modo como nós organizamos a nossa vida nesse quinhão de terra que nos cabe habitar.
Sinceramente, nós, brasileiros e brasileiras, merecemos mais do que isso. Os cientistas sociais que me perdoem, mas não somos um povo sem ética mais do que é sem ética qualquer outro povo do mundo. O “jeitinho”, afinal, não é brasileiro, mas é humano. Usar uma expressão desse quilate contra nós mesmos, é só uma prova da baixo autoestima que gostamos de cultivar e, ao mesmo tempo e acima de tudo, uma medida psicológica que autoriza os delinquentes a (quase) tudo.
Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
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