Não há prazer nenhum na certeza de prever a morte de alguém. Em 4 de junho, cantei para meus colegas que Jimmy Aldaoud – um homem de saúde frágil que veio para os EUA em 1979, quando ainda era menino, e vivia no Michigan – não ia sobreviver. Foi o mesmo dia em que sua irmã, Rita Bolis, me ligou para dizer que ele tinha sido deportado e estava dormindo no banco do aeroporto de Najaf, no Iraque.
Aldaoud nunca esteve no Iraque antes. Nasceu na Grécia, de pais iraquianos refugiados. Não tinha documento de identidade nem condições de obter os cuidados médicos de que necessitava para a diabete. Não sabia falar árabe, muito menos se virar em uma sociedade destruída pela guerra, onde o fato de ser americanizado transforma a pessoa em alvo. Em 6 de agosto, Bolis entrou em contato comigo de novo para dizer que o irmão tinha morrido. A família acha que foi porque ele não conseguiu obter os remédios de que precisava.
O enterro foi na sexta, dia 6 de setembro. O corpo foi enviado de volta para o Michigan, a única maneira que ele encontrou de voltar para casa. Jimmy Aldaoud – vivo, que amava e era amado pela família – nunca poderia pôr os pés nos EUA de novo.
Faço parte da equipe de advogados que começou a tentar salvar a vida de Aldaoud há mais de dois anos, antes mesmo de sabermos seu nome: ele era um dos mais de 1,4 mil iraquianos neste país com ordem de deportação, a maioria emitida há anos, ou mesmo décadas. De repente, em junho de 2017, o Serviço de Imigração e Controle de Alfândegas (ICE, na sigla em inglês) convocou centenas para expulsão imediata.
O ICE tem de suspender as deportações para o Iraque até que se faça uma investigação íntegra da morte do rapaz
Minha organização, a União Americana pelas Liberdades Civis do Michigan, trabalhando com profissionais de todo o país, entrou na Justiça, alertando que a medida resultaria em perseguição, tortura e morte; um juiz federal decidiu que o colega da imigração é quem teria de avaliar se essas pessoas estariam seguras no Iraque antes de proceder às deportações, em uma sentença que salvou centenas de vidas.
Só que, indiferente ao custo humano, o ICE apelou, com a intenção de deportar gente como Aldaoud, que viveu a vida inteira aqui. O Sexto Tribunal de Apelações revogou a decisão, liberando a agência para retomar as deportações em abril – e foi o que ela fez, mesmo sendo o Iraque tão perigoso que o Departamento de Estado recentemente retirou de lá todos os funcionários não essenciais. Aldaoud foi um dos primeiros a ser mandado embora assim que o veredito foi derrubado. E, como era de esperar, sua morte foi inevitável.
Aldaoud foi enterrado ao lado da mãe. E certamente haveria de querer assim, já que, como Bolis conta, era "o filhinho da mamãe". Era também defensor incansável das três irmãs, principalmente quando o pai bebia. Ele, aliás, expulsou o filho de casa quando este tinha 16 anos, o que não impediu que continuassem a brigar, e o jovem acabou sendo condenado mais de uma vez por agressão. Lutava com doenças mentais e a condição de rua; sem emprego fixo, furtava moedas de carros abertos. Essas contravenções o tornaram "deportável" porque tinha apenas a residência permanente; não era cidadão norte-americano como as três irmãs mais novas, que nasceram aqui.
Apesar de tudo isso, não se tornou uma pessoa dura; continuou próximo à família, ainda que nunca tenha deixado as ruas da Grande Detroit. Só quando a mãe sofreu um AVC que deixou o lado esquerdo de seu corpo paralisado, Aldaoud voltou para casa para cuidar dela, trocando-lhe as fraldas e lhe administrando insulina até ela morrer, no dia do próprio aniversário, em 2015.
Antes de ser deportado, passou um ano e meio detido no ICE. Sentia uma saudade imensa da família, principalmente de Ella, a sobrinha de 3 anos, filha de Bolis – tanto que guardava uma foto da pequena sob o travesseiro, na cela, e confessou à irmã uma vez que ficava olhando para a imagem e rezava a Deus para que pudesse ver a menina pelo menos cinco minutos.
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Depois de deportado, Aldaoud nunca mais conseguiu ver pessoalmente nem Ella, nem ninguém da família; a exceção eram as chamadas desesperadas no FaceTime, na tentativa de manter os entes queridos na lembrança e conseguir dormir à noite nas ruas de Bagdá. Ele perdera a família que mantinha seu mundo intacto.
Todo dia, o ICE tenta deportar gente como Jimmy Aldaoud para o Iraque; e todo dia eu tenho a sensação de estar fazendo um tipo de trabalho semelhante ao que lida com a pena de morte. Meus clientes correm risco de vida simplesmente porque nasceram além de nossas fronteiras. De fato, nem sei se Aldaoud foi o primeiro a morrer, porque não conseguimos manter contato com muitos que foram forçados a sair dos EUA – mas tenho certeza de que, se as expulsões continuarem, ele não será o último.
Precisamos proteger outros iraquianos do destino que teve Aldaoud. O ICE tem de suspender as deportações para o Iraque até que se faça uma investigação íntegra da morte do rapaz e dos excessos do órgão na ânsia de mandar mais de mil pessoas para um país em que correm grande perigo. E o Congresso deve aprovar um projeto de lei bipartidário, o Ato de Remoção Deferida para Iraquianos Incluindo Minorias, que suspenderia as deportações para aquela nação durante dois anos, o que daria aos estrangeiros uma chance de provar aos juízes de imigração por que suas antigas ordens de expulsão já não têm mais razão de ser.
Essa legislação é essencial. Tenho medo – ou melhor, tenho certeza – de que, se não for aprovada, o ICE vai continuar com as deportações e mais gente vai morrer. E não quero prever outra morte.
Miriam Aukerman é advogada e trabalha na ONG União Americana pelas Liberdades Civis do Michigan.
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