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| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil/

A atual crise da democracia brasileira exige torná-la mais transparente, republicana e participativa. Essa necessidade requer a revisão de certos lugares-comuns de nossa história. Um deles diz respeito à obra de Juscelino Kubitschek e o significado político de Brasília, que está profundamente ligado ao caos que se instalou sobre o Rio de Janeiro.

De democrático, JK tinha pouco. Ele entendia a palavra democracia à moda da República Velha, ou seja, como um regime constitucional de orientação liberal oligárquica. Juscelino estava preocupado, em especial, em evitar que o poder saísse das mãos das oligarquias rurais, ameaçado pelas classes médias urbanas e os trabalhadores do Centro-Sul do país, especialmente no eixo Rio-São Paulo. Via com maus olhos políticos como Jânio, Jango e Lacerda, que disputavam os votos das classes urbanas. Achava que o povo era uma massa manipulável e que os políticos modernos não passavam de “populistas” e demagogos.

Recriar o velho distrito federal e levar para lá o Congresso seria uma oportunidade de matar dois coelhos com uma cajadada só

JK tinha especial pânico do povo da capital federal, o Rio de Janeiro, a maior cidade do país (3 milhões de habitantes) e onde ele não só não tinha voto como se sentia pressionado pela imprensa, pelos sindicatos, pelos estudantes e pelos industriais. Ele confidenciou a um amigo acreditar que uma simples greve de bondes no Rio poderia derrubá-lo da presidência. Era preciso, portanto, fugir. A mudança da capital era um velho sonho do federalismo oligárquico da República Velha, que nunca saíra do papel. O raciocínio era simples: para modernizar o país “em segurança”, era preciso fazê-lo de longe, de uma cidade onde não houvesse operários, estudantes, imprensa, associações, favelados, etc. Em suma, longe do povo e da sociedade civil.

As bancadas ruralistas de Goiás, Minas e Mato Grosso apoiavam entusiasmadas a medida, por razões óbvias. O deputado goiano Emival Caiado, tio do atual senador Ronaldo Caiado, alegava ser impossível que o governo federal atendesse os pleitos do ruralismo do Centro-Oeste estando situado no Rio de Janeiro, “onde é grande a influência dos grupos industriais e das massas urbanas, de que se faz porta voz a grande imprensa”.

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Brasília também era impopular. Pesquisa feita pelo IBOPE em janeiro de 1958 mostrava que mais de 60% da população brasileira desaprovavam a medida e a forma como se fazia a mudança. A construção da nova capital também foi uma hecatombe social. JK conseguiu para Israel Pinheiro, presidente da companhia construtora (NOVACAP), poderes ditatoriais sobre todo o território do futuro Distrito Federal. Pinheiro transformou-o em um verdadeiro estado de exceção, privando milhares de operários de qualquer direito trabalhista para completar a cidade dentro do mandato do presidente. Proibidos de viver no Plano Piloto, os trabalhadores acabaram nas cidades-satélites, segregados por um cinturão verde, a mais de 15 km de distância.

Quando o mandato de JK acabou, enquanto Lacerda e Brizola se elegeram no Rio pelas tais “massas” de que tinha pavor, ele se fez docemente eleger senador por Goiás, que foi um presente da bancada ruralista agradecida, num pleito que, segundo o próprio governador, nada lhe custou. JK aplaudiu o golpe parlamentarista, alegando que ele teria sido impossível se o congresso ainda funcionasse no Rio, devido à força do “populismo” na cidade. Ou seja, apreciou o enfraquecimento sofrido pelo Congresso pela falta de ambiente democrático, golpe de que o Legislativo nunca mais se recuperou. Também deu graças a Deus por estar longe da imprensa que o atormentava: O Globo, o Correio da Manhã, a Folha de São Paulo e o Estado de São Paulo.

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Por fim, JK também apoiou o golpe de 64, na esperança de se livrar do Jango e do Brizola na eleição de 65. Como se sabe, JK acabou também sendo cassado, engolido pela caixa de Pandora que ajudou a abrir. Entretanto, sua ideia tecnocrática de um desenvolvimento patrocinado de uma capital situada a mais de mil quilômetros de qualquer cidade grande era a mesma da ditadura militar que se seguiu. Os sucessores de JK – Jânio e Jango – haviam abandonado Brasília. Governavam do Rio, onde continuavam os ministérios. Foi a ditadura que retomou o paralisado projeto de JK e consolidou a cidade. O primeiro presidente a governar de Brasília foi o general Médici.

Pesquisas demonstram que o isolamento de uma capital é proporcional ao nível de ineficiência e corrupção do governo. Brasília é a 12ª. capital mais isolada do povo em um universo de 156 países. Também se tornou uma das capitais mundiais da segregação socioeconômica, ao banir os trabalhadores a uma distância de mais de 15 km. Planejada para ser a utopia da modernidade brasileira, Brasília se tornou uma distopia democrática. Não é só, portanto, a imagem de democrata gozada por JK que merece ser revista. Parece evidente, hoje, que a tarefa de melhorar a qualidade da democracia brasileira exige repensar Brasília como capital do país.

Não se trata, evidentemente, de retirar-lhe dessa função ou papel, mas de corrigir suas evidentes negatividades do ponto de vista democrático. Tal medida impõe hoje fazer o caminho inverso ao dos anos 1950, ou seja, trazer de volta para o Sudeste o Congresso Nacional e, com ele, parte da administração pública, de preferência em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Diversos países do mundo – como Alemanha, Chile, África do Sul - possuem mais de uma capital.

Seria uma boa oportunidade, aliás, para resolver a crise permanente do Rio de Janeiro, que nunca se recuperou do golpe que lhe foi aplicado por JK e pela ditadura que lhe completou a obra, obrigando a ex-capital a se fundir com o Estado homônimo e reduzindo-a a um município como outro qualquer. Recriar o velho distrito federal e levar para lá o Congresso seria uma oportunidade de matar dois coelhos com uma cajadada só.

Christian Edward Cyril Lynch é professor de pensamento político brasileiro na UERJ e diretor do Instituto Brasileiro de História do Direito.
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