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João Calvino estava inserido em um estado social dualista. Sem dúvida, o pensamento social e humano que Calvino desenvolveu tem gerado mudanças no mundo dos pensamentos e concepções. O reformador submetia o seu intelecto perante a face de Deus. Neste sentido, a sua teologia valoriza a vida humana. Para Calvino, não é somente o ser humano que deve ser honrado por possuir a semelhança à imagem divina, mas também o mundo como uma criação divina. A teologia que ele elaborou dava proeminência ao grande princípio de que há uma graça particular que opera a salvação e também uma graça comum pela qual Deus, mantendo a vida do mundo, suaviza a maldição que repousa sobre ele, suspende seu processo de corrupção, e assim permite o desenvolvimento de nossa vida sem obstáculos, na qual glorifica-se a Deus como Criador.

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A compreensão da vida social para Calvino é baseada na interpretação bíblica. Todo tipo de engajamento visa cumprir o mandamento divino. Zelar, cuidar, honrar e respeitar a vida humana e tudo o que implica o bem-estar do homem era o alvo deste servo de Deus.

A Reforma Protestante ocorrida no século 16 não foi somente um movimento espiritual e eclesiástico. Teve também aspectos e dimensões políticas e sociais. Calvino, muito mais que Lutero, se debruçou sobre o tema social e o valor da vida humana. Lutou para que a sociedade tivesse uma vida melhor; pregou contra a opressão religiosa, contra as guerras, contra as heresias, contra o desemprego, contra a desigualdade, contra a miséria. Calvino tinha uma leitura social e humana perspicaz. Em 1535, ele fundou o Hospital Geral, destinado a dar assistência aos enfermos, aos pobres, aos órfãos e aos idosos.

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Durante a terrível peste bubônica que certa vez devastou Milão, o amor heroico do cardeal Carlos Borromeo distinguiu-se brilhantemente na coragem que ele manifestou em suas ministrações aos moribundos; mas durante a peste bubônica, que no século 16 atormentou Genebra, Calvino agiu melhor e mais sabiamente, pois não apenas cuidou incessantemente das necessidades espirituais dos doentes, mas ao mesmo tempo introduziu medidas higiênicas até então incomparáveis, pelas quais as ruínas da praga foram interrompidas.

Existia no contexto de Calvino exclusão social e desigualdade em todos os níveis. Em consideração à penúria de víveres, a pobreza de uma parte da população e a avareza de outros, medidas de ordem econômica foram tomadas imediatamente contra o monopólio e a especulação, para colocar os produtos básicos da alimentação ao alcance de todas as pessoas.

Calvino desenvolveu a sua teologia dentro de um ambiente contaminado pelo caos. Genebra e quase toda a Suíça viviam uma crise de todas as (des)ordens possíveis. A sua teologia é prática e se voltava para o povo. No seu diagnóstico, Calvino tentou criar um sistema ou um ambiente de vida em que todos pudessem mudar para melhor. A situação de Genebra era lamentável. Havia muita pobreza, impostos agravados e pesados. Os trabalhadores eram oprimidos por baixos salários e jornadas extensas de trabalho. O número de analfabetos era altíssimo. Carecia-se de assistência social em toda parte. Os bêbados dominavam as ruas e a prostituição era uma forte marca da cidade.

Uma indignação permeava o coração do teólogo. Ele faz uma denúncia contra os pecados sociais, a exemplo da estocagem de alimentos (trigo), dos monopólios e da especulação financeira, como tendo a origem no egoísmo e na avareza do homem. Ele denunciava aqueles que preferiam deixar que o trigo se deteriorasse em seus celeiros, para que ali fosse devorado por bichos e apodrecesse, em vez de ser vendido, quando a necessidade do povo se fazia sentir.

Outro aspecto da teologia deste reformador é o combate a todo tipo de indolência e vida ociosa. Para a valorização do ser humano, ele mesmo precisa se sentir valorizado. Então, a teologia que ele desenvolveu tem uma complementação no que tange a vida humana – a questão do trabalho. O reformador entendia que o homem deve viver do suor do seu trabalho. Uma posição bíblica. Portanto, o trabalho é algo eminentemente digno, pois é a realização da vontade de Deus para o homem. Assim, o homem não se realiza plenamente senão no trabalho, visto que foi para isso que foi criado e vocacionado. Por isso, existia uma pregação veemente contra o desemprego. Privar o homem do seu trabalho é pecado contra Deus – pois o trabalho é dom de Deus e o dever que ordenou ao homem, ensinava Calvino. Quem fecha uma porta de emprego para uma pessoa tira a vida de quem busca o emprego, pois todo o homem depende diariamente do seu labor para o pão. Ele precisa sustentar a sua família. Assim, promover o desemprego, na opinião de Calvino, seria um atentado contra vida humana e, portanto, um pecado contra o próprio Deus, uma violação do “não matarás”. Ele destaca, ainda, que, por mais que a pessoa esteja necessitada de um emprego, o patrão nunca poderá inferiorizá-la. Traz à luz para o relacionamento entre empregado e empregador a Epístola de Tiago, em que todos estão no mesmo nível. Se o empregado tem um senhor, o empregador deve entender que existe o Senhor dele, e este é justo na sua ação. Sendo assim, ninguém deve defraudar o outro. O empregado deve se dedicar ao trabalho e o patrão deve pagar dignamente o seu empregado pelo trabalho exercido.

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Por causa desse significado espiritual e ético conferido ao salário, o produto do trabalho não pertence, portanto, mais ao patrão que ao operário, ambos sócios na atividade comum. Em conjunto, recebem o produto como a recompensa providencial de seu esforço. Patrões e empregados são, em conjunto e igualmente, devedores de Deus segundo os dons que receberam e puseram em atividade, sem mérito maior para uns ou outros. Devem, portanto, repartir esses frutos de comum acordo, livremente, mas levando em conta a contribuição inicial e a responsabilidade de cada um. Disso decorre que não se trata simplesmente de regular-se pela lei da oferta e da procura, sem qualquer outra consideração ética. E mesmo que tal ética jamais haja sido aplicada à letra, é sua orientação espiritual que importa observar. A negociação, aqui como em qualquer lugar, deve ocorrer. A negociação é um princípio social superior, que deriva diretamente do fato de que nenhum fator econômico é, sozinho, dono do que produz em conjunto com os outros. O produto permanece sinal concreto da graça de Deus, um dom a partilhar.

A questão aqui é que Deus considera como roubo não somente o que o homem subtrai das posses do próximo, mas ainda tudo de que o priva, em recusando-lhe o que lhe deveria prover da parte de Deus. Todo bem que deveria servir ao proveito do próximo, mas é retido ou desviado, é por Deus considerado como uma posse fraudulenta. Privar o próximo daquilo que Deus lhe pretende conferir é cometer um confisco às suas expensas e uma ofensa contra Deus.

O protestantismo de tradição reformada alfabetizou o homem da sua época, dando-lhe acesso a um mínimo de instrução. Libertou-no de uma série de vícios danosos à sua saúde, nocivos à sua capacidade de trabalho, e o conduziu às virtudes de uma vida sóbria. Integrou o homem em uma comunidade, que é também um grupo de ajuda mútua. Ensinou que o homem deve buscar seu papel social como uma vocação, um chamado de Deus. Entendeu que a atividade econômica e financeira deve ser um direito de todos, sem privilégio ou exclusividade por parte do Estado ou da Igreja.

Zelar, cuidar, honrar e respeitar a vida humana e tudo o que implica o bem-estar do homem era o alvo deste servo de Deus.

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O trabalho dos homens e mulheres de nosso tempo perdeu sua dignidade. Essa dignidade é a que Deus lhe confere, fazendo dele uma vocação pessoal, na qual cada indivíduo é responsável perante ele. Essa vocação é fundamental, responsabilidade inalienável de todo trabalhador, seja qual for sua ocupação (e desde que, evidentemente, esse trabalho seja moralmente honroso e socialmente tolerável). O reformador interveio junto aos seus colegas para que a ética da justa remuneração fosse aplicada na sua cidade. Naquela época, como na maioria dos países vizinhos, a população atravessava um período difícil, caracterizado por alta generalizada do custo de vida. Os salários não acompanhavam essa elevação. O salário concedido a todo trabalhador é, portanto, a expressão tangível do salário gratuito com que Deus privilegia a obra de cada indivíduo. Assim, por mais profano que seja, o salário se reporta à obra de Deus. Expressa de forma visível a intervenção de Deus em favor da frágil existência humana. Além disso, porque esse salário é o sinal da graça de Deus, não pode ser considerado como favor de que o dono do trabalho possa dispor como bem lhe prouver. Dando ao trabalhador a remuneração de seu trabalho, o dono nada mais faz que transferir ao próximo aquilo a que este tem direito da parte de Deus.

A marca da teologia de Calvino era de que cada ser humano deve usufruir direitos iguais, com a liberdade de dedicar-se à atividade criadora. E seu trabalho produtivo deve exercer-se na solidariedade, o que determina que a liberdade seja dominada em favor de uma justa redistribuição (mas não estritamente e obrigatoriamente igualitária) das riquezas produzidas, já que estas foram elaboradas a partir de recursos gratuitamente postos por Deus à disposição de todos.

Na Bíblia se condena quem quer que abuse do trabalho de outra pessoa. A função da Igreja é a de denunciação e a de anunciação. A Igreja tem de denunciar todas as estruturas pecaminosas que oprimem e escravizam os seres humanos. Algumas vezes, a voz da Igreja pode ser a única que tenha condições de falar abertamente. A Igreja tem o dever de anunciar a vinda do reino de Deus, as possibilidades de uma ordem mais justa, mais humana e mais segura. Consequentemente, maltratar um de nossos semelhantes é maltratar uma daquelas criaturas com as quais, acima de tudo, Deus se deleita. Na realidade, é verdade que a exigência de justiça se baseia em nossa própria natureza – especialmente no fato de que ser um ser humano é uma criatura que mantém aquela relação especial de imagem de Deus. Visto que eles carregam a imagem de Deus gravada neles, Deus mesmo é violado nos seres humanos. Assim, embora eles não tenham nada deles mesmos pelo que possam obter o favor divino, Deus olha para seus próprios dons neles e, dessa maneira, é levado a amá-los e a cuidar deles. Contudo, deve-se observar cuidadosamente essa doutrina, visto que ninguém pode prejudicar seu irmão sem ferir a Deus mesmo. Se essa doutrina estivesse fixada mais profundamente em nossa mente, relutaríamos mais quando fôssemos praticar algo danoso.

Mas qual é o modelo do pensamento de Calvino nesse ponto? Calvino gostava de empregar a metáfora do espelho: ser um ser humano é refletir Deus. Mas em que aspectos nós refletimos Deus? E quais são precisamente as exigências de justiça e caridade baseadas neste ato de refletir? O pensamento de Calvino é o de que, claramente, maltratar o espelho significa maltratar o que ele reflete – maltratar o ser humano é maltratar a Deus.

Toda a criação caiu com o pecado e está agora sob a ação redentora de Cristo, que é o Senhor tanto da Igreja quanto da sociedade. Os cristãos devem lutar hoje para manifestar a presença do reino de Deus, embora a sua plenitude somente se alcançará com o retorno de Cristo. Somos salvos para servir. Os cristãos devem se infiltrar em todas as esferas da sociedade para chamá-la ao arrependimento e à conformação às normas do reino. A Igreja é um centro de arregimentação e treinamento de pessoas que se reformam para reformar. Assim viveu João Calvino. Este é o seu legado. Sigamos o seu exemplo de vida. Calvino nos ensinou que o evangelho não é uma doutrina de língua, mas de vida.

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Christopher Marques é bacharel e mestre em Teologia, pós-graduado em Ciências da Religião, professor convidado da Faculdade de Medicina Santa Marcelina na área de Espiritualidade, e autor de “Quando a Vontade de Viver Vai Embora”.