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Johnny Depp é o macho que o Brasil tem de deixar de ser

Depp, durante o julgamento: ator receberá pouco mais de US$ 10 milhões de Amber Heard, mas terá que indenizá-la em US$ 2 milhões (Foto: EFE/EPA/EVELYN HOCKSTEIN)

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Finalmente terminou o julgamento do processo civil movido por Johnny contra sua ex-esposa a também atriz AmberHeard na corte de Virgínia. Depp processou Heard por difamação, pela publicação de um artigo de opinião escrito por ela no jornal The Washington Post, dizendo que sofrera abuso físico, emocional e sexual da parte de um parceiro não nomeado no texto. Depp teve que provar em corte que sim, era ele o alvo das alegações de Heard, que o texto lhe trouxe consequências danosas para a carreira, e o mais difícil, jogar dúvida suficientes sobre as acusações de abuso que a ex fizera contra ele. Vou tentar não cair na vala comum do emocionalismo direitista e soltar fogos de artifício celebrando a vitória do macho, mas vou oferecer ao leitor uma visão do momento social que vivemos, visão customizada especialmente para nosso público da Brasiléia desvairada.

Duas coisas me incomodaram na cobertura do evento. A primeira é a suposta equivalência moral que alguns viram na mensagem do filme Top Gun Maverick e a vitória de Depp. A segunda é celebrar Depp como pessoa, porque ele venceu a luta contra o feminismo. As duas inferências são a meu ver, falsas. Precisamos ter cuidado ao “traduzir” eventos da guerra cultural americana para o contexto brasileiro. A direita brasileira não pode ser apenas reativa, seguindo bovinamente as pautas americanas. Nossos problemas são diferentes, nossas dores sociais são mais profundas.

O julgamento Depp versus Heard se arrastou por mais de seis semanas e cada detalhe do que aconteceu no tribunal foi dissecado pela mídia em inúmeras reportagens, memes, vídeos no TikTok, Youtube, artigos e posts. Especialistas de todo tipo se pronunciaram sobre o comportamento psicológico dos dois atores, e de suas testemunhas, sinais corporais de mentira ou autenticidade de suas declarações. Advogados opinavam sobre as questões legais, enfim, não faltou publicidade ao caso.

O resultado foi positivo para Depp. Não só o veredicto final, mas a opinião pública desde o começo do caso lhe foi favorável. Depp parece uma pessoa mais real, mas acessível, o típico “sujeito boa praça”. Inúmeros amigos e empregados compareceram para dar um bom testemunho sobre o ator, aos olhos de todos generoso e gentil. Mas o julgamento também revelou seus hábitos. O ator se mostrou um usuário contumaz de drogas, alcoólatra inveterado e verbalmente agressivo e cruel em momentos de discórdia. Ficou claro que o relacionamento era doente das ambas as partes. Em síntese, nem Johnny nem Amber foram santos. O que você conseguir imaginar de provocação, traição, grosserias, crueldades de diversos tipos, desajustes e até violência física possivelmente foi praticado por eles.

A direita correu para celebrar a vitória de Depp. Muitos veêm o julgamento como uma derrota pública do radicalismo insano do movimento #MeToo, que, infelizmente, foi instrumentalizado pelo feminismo parricida. Acabou se transformando numa coisa que as mulheres que denunciaram abusos cometidos contra elas não poderiam ter antecipado. O que num primeiro momento serviu, sim, para dar visibilidade a um problema americano que afeta todos os estratos sociais, acabou se voltando contra os homens e se tornando uma arma do feminismo. Eu acredito que a intenção da maioria das mulheres que se manifestaram sobre o que sofreram não era a de usar seu sofrimento contra toda a classe masculina. Um exemplo é a jornalista Megyn Kelly, ex-âncora da Fox News, que apesar de ter participado das primeiras ondas do #MeToo denunciando o poderoso CEO Roger Ailes, não é feminista radical e lamenta os rumos tomados pelo movimento.

Considerando que injustiças acontecem também por aqui e que, como em todo lugar, homens poderosos são protegidos pela posição que ocupam, é verdade que as vítimas muitas vezes não eram ouvidas e muitos abusadores deixaram de pagar na Justiça pelo que fizeram. As leis americanas são, em geral, mais justas e melhor elaboradas do que as brasileiras porque são feitas para funcionar, ou seja, produzir efeitos sociais positivos, coisas que as leis brasileiras não parecem levar em consideração.

Mas na medida em que a definição de abuso foi se ampliando para incluir qualquer coisa, e que a visibilidade das vítimas se tornou vantajosa socialmente, o movimento #MeToo virou às avessas e acabou se tornando uma arma contra os cidadãos de bem, homens ou mulheres. A correção de um problema real acabou gerando abusos e injustiças. Nas palavras da direitista negra Candace Owens, o veredicto do julgamento restaurou na direita americana a esperança de que a opinião pública sobre a questão saia do piloto automático do #believeallwomen – acredite nas alegações de qualquer mulher independente dos fatos – retornando para o terreno da sensatez, o #believefacts.

E no Brasil? Se o julgamento não nos afeta legalmente com certeza tem um efeito cultural. Em minha opinião, a direita celebrou a vitória de Depp com muito confete. A primeira coisa que temos de entender é que o maior inimigo do homem com H maiúsculo em nosso país não é o feminismo da elite educada, mas sim a idealização de um símbolo de macho desprezível e sem moral, e a truculência, a violência e a impunidade dos crimes cometidos por homens contra sua própria família. Um país onde um assassino corta a namorada em pedaços para alimentar seus cachorros, e ao sair da cadeia em apenas 7 anos, tem a coragem de autografar sorridente fotos de rottweilers a pedido de garotinhas adolescentes, não pode se dar ao luxo de se ocupar com os problemas pó-de-arroz do primeiro mundo. O macho brasileiro não está ameaçado porque um gay ou outro tem visibilidade na TV. Tá aí a Anitta para demonstrar que o chamamos de feminismo no Brasil ainda não passa de uma coreografia social feminina para atrair a lascívia do macho.

Porque a nossa academia além de pobre é subserviente, vive de bajulamentos e capachismos aos modismos acadêmicos americanos, ainda não foi capaz de pesquisar devidamente nossos primórdios. Está acomodada, importando definições prontas, ao invés de descobrir coisas essenciais como, por exemplo, o fato de que o Brasil não é um país patriarcal. Eu chamo nosso modelo social de “macho-matriarcado”. Explico. Nos EUA o modelo masculino mais comum e visto como o ideal social era até pouco tempo o do pai de família responsável, que ama e se sacrifica pelos seus, e exatamente por isso tem o respeito e a autoridade para ser o líder da família e, consequentemente, da sociedade. No Brasil, o nosso modelo de macho sempre foi o canalha.

Macho que é macho no Brasil não presta contas do que faz a ninguém, trabalha porque tem que fazer, mas não tem orgulho nem prazer no trabalho. Ele tem como ideal supremo o enriquecimento fácil para poder continuar fazendo o mínimo. Quanto às mulheres? Se cair na rede é peixe. Quanto mais mulheres, mais macho me torno. Deu sopa? Opa! Faturo, porque afinal não sou gay. Considerações em relação aos filhos, responsabilidade moral são secundárias. Eu trabalhei numa cidade em Rondônia onde 96% das pessoas não tinham o nome do pai na carteira de identidade. Isso não é especulação, é estatística.

O matriarcado e o patriarcado como tradicionalmente entendidos não pertencem ao mesmo paradigma. Eles têm diferentes definições e implicações. A descrição do termo matriarcado em muitas culturas mostra que esse sistema não é um espelho exato do paradigma masculino. Ambos os termos descrevem a estrutura social e como ela se baseia nos papéis de gênero. O termo patriarcalismo descreve uma sociedade na qual o homem tem autoridade, carrega o peso da liderança, controle e a responsabilidade de dar coesão estrutural à sociedade como um todo. No entanto, o matriarcado não descreve o mesmo papel estrutural. Inúmeras culturas do mundo são chamadas de matriarcais por permitirem direitos sexuais e sociais às mulheres, mas as estruturas matriarcais como imaginadas como as das mitológicas “amazonas” governando em soberania não existem.

A categoria "matriarcado" sugere estruturas que dependem da mulher, mas que não construídas em torno de poder. Em certas culturas a participação das mulheres tem um significado mais forte do que em outras. Muitas sociedades indígenas na América Latina obedecem a linhagens matrilineares ou bilaterais, e têm economias que incluem alta participação de mulheres, inclusive na aquisição de proteínas nas sociedades caçadoras coletoras, e as mulheres não sofrem tabus restritivos. No Brasil, essa construção social matriarcal certamente permeou a nossa sociedade primordial mais por acidente. O macho responsável, como presença estruturante da família e da sociedade era uma raridade. O patriarcado dos engenhos retratado pelo Gilberto Freyre, que evoca a noção do “coronel”, era uma ocorrência pontual e mais comum na costa. Mas por uma questão historiogenetica, termo de Eric Voegelin que se refere à construção de mitos que amoldam a história, se consagrou como o principal modelo social brasileiro. Entretanto, como muitos estudos atuais têm demonstrado, o nosso modelo mais comum de família pode ter sido mesmo o da mãe solteira, índia ou mestiça, protegida pela sua família extensa e sem a presença constante do pai.

As marcas da presença estruturante da mulher na sociedade brasileira podem ser constatadas até hoje nas metáforas e símbolos que usamos em nossa vida familiar brasileira. Quando um casal brasileiro se casa em uma igreja cristã, o celebrante no ato cerimonial final, diz: “Eu vos declaro marido e mulher”. A declaração oposta é feita nos EUA: “Eu os declaro homem e esposa” – dizem os celebrantes americanos. No Brasil o membro do casal que perde seu status de pessoa para ser visto socialmente em relação à outra é o homem, não a mulher como nos EUA. Outro exemplo: se você é uma pessoa corajosa no Brasil, capaz de superar desafios, a metáfora mais comum é “você é uma pessoa de peito”. Nos EUA, a coragem se tem nos testículos. O semanticista George Lakoff considera que as metáforas metonímicas não são simplesmente dispositivos referenciais. Você pega uma parte para representar o todo, mas a parte que você pega também explica o aspecto do todo no qual você está focando. Nos EUA, o mesmo significado, valor, coragem, desafio, é alcançado com referência às partes reprodutivas de um homem.

Coragem na cultura americana é uma atitude masculina por excelência. No Brasil, porém, a escolha da palavra “peito” induz uma referência à mulher. Você é homem ou mulher “de peito” se enfrentar abertamente os desafios da vida. Pode-se argumentar que a referência “peito” ali é neutra, e talvez especular que seja uma referência a “coração”. No entanto, em português todas as referências metafóricas ao coração são claramente sobre emoções ou sentimentos, nunca atitude. Na minha interpretação, a metáfora se refere à resistência, perseverança e coragem que historicamente pertenceram às mulheres brasileiras que continuaram criando seus filhos depois que o homem partiu. A coragem é, portanto, na cultura brasileira, um valor claramente feminino. Nossos símbolos que se referem à estabilidade, à proteção, ao sustento, ao conforto no sofrimento, e até ao divino, são todos femininos. Existe um vácuo masculino na nossa cultura que é principalmente um vácuo moral.

O que isso nos diz sobre o macho brasileiro? Esse “macho-matriarcal” implica numa macheza reativa. Ele compete com a mulher por atenção e por poder, mas não oferece nada em troca. Enquanto a mulher tem uma função estrutural definida que sustenta o tecido social, o macho é definido pelo que não é. Não é mulherzinha, não é doméstico, não é responsável, não é besta, não é bicha. Ele é a oposição não somente à mulher, mas à estrutura social como um todo. É o malandro, solto e vadio, absolutamente inseguro e frágil em seu isolamento. Esse macho é violento porque é a força física a prerrogativa que lhe restou para assegurar seu espaço. Diferente da masculinidade do Top Gun Maverick e do James Bond de Time to Die que definem a sua posição de homens como sendo essencialmente moral.

Maverick é homem porque se sacrifica pela pátria, não deixa o amigo para trás, sua bravura e coragem derivam da nobreza de seus valores. Até Bond, mulherengo incorrigível, no último filme não hesita em sacrificar sua vida para salvar uma mulher e a filha, porque pela primeira vez descobriu a alegria de ser um homem completo – um pai de família – e preferiu morrer a renunciar ao dever de ser marido e pai, que tinha acabado de descobrir.

Esse homem de verdade não bate em mulher. Esse homem de verdade não precisa abusar psicologicamente de sua companheira, fazendo-a sentir pequena para que continue dependendo dele. Ele ganha respeito porque serve sacrificialmente e seu serviço é a proteção, liderança e amor. Esse é o modelo moral do odiado patriarcado das feministas na sua melhor forma.

O macho brasileiro que eu conheço bem por ter convivido com as regiões mais isoladas do país, não precisa de um Johnny Depp para lhe lembrar de sua macheza, e não precisa se regozijar na derrota da mulher que o emasculou. Ao contrário, ele precisa de bons modelos, precisa de símbolos de homens de verdade, que se definem pelas características positivas da masculinidade. Proteção, carinho, e respeito às mulheres, cuidado com os filhos, ética de trabalho e limites sexuais. Macho que é macho não come todas, exerce o autocontrole, se limita ao casamento porque ama a Deus, força maior do que ele mesmo, e porque sabe que sexo não acontece sem consequências. Macho que é macho não faz filhos por aí a torto e direito, mas se torna pai de verdade, responsável pelo cuidado e pela educação dos filhos que gera. Macho que é macho sabe ser forte, mas ao mesmo sabe ser carinhoso e meigo. Macho que é macho pode ser “brou” com os “brous”, mas em casa sabe ter civilidade, e educa seus filhos no bem. Essa distinção de papéis parece ter muita pouca importância no Brasil.

Enfim, vivemos em um país desenvolvido, com uma economia poderosa, mas os nossos índices sociais são parecidos com os dos países mais pobres do mundo. Enquanto a ideia do homem de verdade, que é o homem da família, não substituir o ideal do bandeirante tóxico que cultivamos por cinco séculos, vamos continuar assim, um país de órfãos de pai, cheio de homens fracos que afirmam sua masculinidade na macheza e não na responsabilidade e na honra. Thomas Sowell, o genial economista, constantemente denuncia que é ausência da figura do pai nas famílias negras americanas ainda hoje é o mais importante fator causal de seu fracasso econômico.

Não se enganem: os problemas sociais que convulsionam o Brasil fora dos espaços do biutífulpeople são muito mais grosseiros e primários do que os que nos foram apresentados nas seis semanas do julgamento Depp vs. Heard. A ex-ministra Damares Alves disse uma vez, e foi muito atacada por isso, que o Brasil é o pior país da América do Sul para se nascer menina. Ela fez a afirmação baseada nas estatísticas grosseiras que ainda hoje apresentamos. Para cada quatro casos de abuso de menores, apenas um é denunciado a alguma autoridade pública. A maioria permanece devidamente acobertado e culturalmente aceito. Se você tem dúvidas sobre a epidemia de violência que mulheres e meninas ainda sofrem no Brasil, visite o site do ministério da Mulher e da Família e dê uma olhadela no tamanho de nosso câncer social.

Restaurar a família é coisa de conservador, tarefa muito mais importante e mais difícil do que simplesmente celebrar na vitória do Johnny Depp a recuperação do direito de gritar ou de ser bruto com sua esposa, direito esse que o homem brasileiro culturalmente nunca deixou de ter.

Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutoranda em História e Teologia Política na University of St. Andrews (Escócia).

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