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O Judiciário e a democracia em tempos de lawfare

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Sede do STF em Brasília. (Foto: EFE/ Joédson Alves)

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Ao escrever, em 2001, artigo seminal sobre os desafios da segurança e militarização contemporânea, o general americano Charles J. Dunlap Jr. cunhou a expressão lawfare para indicar o uso indevido da lei para fins bélicos, vindo a pontuar a “evidência perturbadora de que o Estado de Direito está sendo sequestrado em outra forma de luta (lawfare), em detrimento de valores humanitários, bem como da própria legalidade”. Ou seja, sob a aparência de princípios jurídicos elevados, acaba-se por subverter o âmago da legalidade constitucional, utilizando a garantia do devido processo legal como alavanca de ataque e fragilização institucional da República. A finalidade, velada ou ostensiva, seria o comprometimento à ordem pública, à harmonia entre os Três Poderes e ao funcionamento orgânico da democracia política.

Por conseguinte, pode acontecer das Cortes de Justiça serem silenciosamente cooptadas por lógicas espúrias de poder que, no afã da realização retórica de direitos positivos, vem a resultar em paradoxal dilapidação corrosiva da legalidade posta, fragilizando-se o imperativo da segurança jurídica e de estabilidade das relações sociais. Agrava o fenômeno, arquitetada estratégia de progressiva judicialização anômala de problemas políticos que, por simetria estrutural de poder, deveriam ser politicamente equacionados. Eventual resposta judicial, à luz do devido processo legal, somente seria cabível em caso de inconstitucionalidade – frontal e direta – da prioritária fórmula política adotada, respeitando-se, assim, o postulado da divisão de poderes, do equilíbrio e da harmonia republicana.

Pode acontecer das Cortes de Justiça serem silenciosamente cooptadas por lógicas espúrias de poder que, no afã da realização retórica de direitos positivos, vem a resultar em paradoxal dilapidação corrosiva da legalidade.

Sem cortinas, a prematura ou excessiva provocação da via judicial, além de propiciar confusão de competências constitucionais, redunda em perigoso esvaziamento da autoridade do Parlamento e do Executivo como instâncias soberanas de consolidação democrática e construção política do possível. Dando vida à ilustração, a sabedoria superior de Aliomar Baleeiro bem pontuou que “a função política do Judiciário não visa a homens, mas a leis”, realçando que “não se confunde com essa função política do Judiciário a tese americana e brasileira de que ele não conhece das chamadas “questões políticas”, como tal entendidas as de exclusiva competência do Congresso e do presidente da República”.

Em complemento histórico, em obra clássica de 1915, a inteligência luminosa de Pedro Lessa já havia exposto que “para se furtar à competência do Poder Judiciário não basta que uma questão ofereça aspectos políticos ou seja suscetível de efeitos políticos. É necessário que seja simplesmente, puramente, meramente política”.

Portanto, a inobservância ou desrespeito às competências políticas da Constituição representa febril fragilização da institucionalidade democrática. Sabidamente, a natureza do poder é intrinsecamente extensiva e dinamicamente expansiva. Logo, o poder sempre quer mais, testa limites, faz ousadias, podendo confundir autoridade com autoritarismo. Nesses fluxos e refluxos dos sistemas complexos que perfazem a contemporaneidade, a lei busca ser baliza de contenção objetiva a abusos ou mau uso do poder republicano. Aliás, se houvesse efetivo respeito à legalidade posta, os litígios ganhariam escassez, pois a lei, por força de sua inerente autoridade social, automaticamente regraria as relações humanas, independentemente de coerções judiciais. Agora, quando a lei fala e não é ouvida, a litigiosidade cresce, os conflitos se exacerbam.

A crise atual é, portanto, de legalidade, em especial pela erosão da autoridade imperativa da lei. Houve um tempo em que a lei não era respeitada porque inexistiam tribunais para protegê-la. Hoje, os temos, mas estamos a perder a via política. E democracia sem política é como liberdade sem expressão. Tal expressão, para ser autêntica, precisa da vivacidade dos Parlamentos, pois os embates e debates da política plantam as raízes da autoridade democrática na consciência dos cidadãos.

Diante das pulsantes incertezas do presente, as sábias lições do passado podem indicar tons do futuro. Com olhos de quem viu, viveu e entendeu o Brasil a seu tempo, a sabedoria inigualável de Rui Barbosa, do alto de sua consciência intemerata e sensível aos dramas humanos, fez ecoar: “uma vez desencadeada, a soberania da conveniência política não conhece limites; rôta a cadeia de garantias, não há uma só que não se perca”. Os fatos aí estão. Arbítrios ilimitados, garantias frágeis. O ponto de saturação está logo ali. Esticar a corda será esganar a Constituição. E, definitivamente, não serão expedientes de “lawfare” que resgatarão a autoridade da lei, a crença cívica na Justiça e a dignidade política da democracia.

Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr. é advogado e conselheiro do Instituto Millenium.

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