Estudos sociológicos apontam que um número crescente de jovens já formulou a noção moral de que o trabalho em si não vale à pena
Nas últimas décadas, as transformações econômicas e socioculturais do capitalismo globalizado imprimiram mudanças radicais a respeito da visão de mundo, expectativa de vida e realização socioprofissional no campo juvenil. Dentre a profusão de mudanças em curso, merece destaque o papel sedutor exercido pela indústria cultural ao convocar com êxito, e, independente dos perfis de classe social, adolescentes e jovens a adentrarem um universo moral, político e cultural fundado na pulverização da identidade e necessidades individuais voltadas ao consumo. Enquanto nos séculos 18 e 19 as pessoas lutaram em defesa de uma sociedade pautada nos valores universais de liberdade, igualdade e fraternidade, o novo modelo de sociabilidade, sobretudo a partir do final do século 20, deu origem à sociedade do espetáculo midiático e disseminou a ideia segundo a qual o ser é menor que o ter e o aparecer.
No plano cultural, a antiga constelação de valores e interesses cultivados pelos pais já não serve de espelho às gerações atuais. Os costumes, as condutas, os valores, os rituais de iniciação e o sentido da vida, compartilhados coletivamente no passado, cedem lugar à fluidez dos valores correntes à busca de modos de vida que impulsionam a existência das subculturas urbanas. O apelo à fragmentação cultural e à formação de tribos juvenis descredencia o apego a valores e costumes universalmente enraizados na tradição e, ao mesmo tempo, deslegitima a pirâmide de mando que justificava a obediência e submissão dos filhos em relação aos pais. No contexto social contemporâneo, marcado pela ambivalência e por inúmeras possibilidades de realização individual, cada um vê-se obrigado a contar com as próprias forças para dar sentido à sua existência.
A expansão da ideologia do mercado e a cultura do consumo turbinam o processo de mercantilização das relações interpessoais e apressa o advento de mudanças socioculturais juvenis em torno do valor-trabalho, noção de família estruturada e legitimidade dos aparelhos de repressão e controle. Enquanto as instituições sociais ainda se esforçam para resgatar valores tradicionais construídos em torno da família estruturada e dever moral ao trabalho, a juventude vê expandir em torno de si a insegurança em relação ao futuro, a incerteza em relação ao mercado de trabalho, a corrosão da política, a progressão do divórcio, a multiplicação das relações sócio-afetivas e a preferência pelo estabelecimento de vínculos conjugais, com data contratual para iniciar e acabar.
Os investimentos sociais do Estado em recursos materiais e humanos no sentido de manter a ordem e impedir, por exemplo, que a juventude em conflito com a lei insista em declarar guerra ao direito protegido pelo Estado já não surtem os efeitos esperados. Estudos sociológicos apontam que um número crescente de jovens já formulou a noção moral de que o trabalho em si não vale à pena. Adolescentes e jovens pobres, e até mesmo filhos oriundos da classe média, optam por fazer outras escolhas. Rejeitam a oferta de trabalhar honestamente para ganhar o salário mínimo e, alimentados pelo desejo irrefreável de consumo, preferem arriscar suas vidas e inserirem-se no mundo ilegal, cruel e sanguinário do tráfico de drogas. Neste campo, a indústria da ilegalidade estabelece sua própria moral fundada num conjunto de regras, leis e tribunais próprios que funciona à base da chantagem, extorsão, julgamento sumário, assassinatos e medo coletivo.
As imposições do quadro econômico e sociocultural, que apontam para a mercantilização das relações sociais, desafiam as diversas instituições sociais a estabelecer uma constelação de valores que a própria sociedade ainda não sabe bem o que seja e que, portanto, terá enormes dificuldades de aceitá-los e promovê-los.
Cezar Bueno, doutor em Sociologia, é professor da PUCPR. E-mail:c.bueno@pucpr.br