Em 4 de julho, Dia da Independência dos Estados Unidos, o rapper Kendrick Lamar lançou o videoclipe da música “Not Like Us”, que encerrou a disputa pública contra seu adversário Drake. O que poderia ser mais uma briga pública fútil tornou-se algo muito maior à medida que Kendrick Lamar — compositor de prestígio em seu meio e ganhador do prêmio Pulitzer — utilizou de sua genialidade poética para fazer de Drake o símbolo de um vício cultural que assola a todos nós: a desonestidade intelectual.
Através de acusações que vão desde pedofilia até falsificação de documentos, Kendrick Lamar descreve a atuação de Drake como a de um fingidor que construiu sua carreira com base em manipulação, exagero, chantagem e falsidade ideológica. Poucas vezes vimos uma personalidade dessa envergadura ser exposta e ridicularizada em um grau tão massivo. Para os olhos atentos, esse evento representa uma grande transformação na cultura pop que pode gerar desdobramentos em diversas áreas da música, do entretenimento e das artes de maneira geral. A música e o clipe já somam mais de 150 milhões de visualizações, com versões reproduzidas por diferentes artistas e grupos, provando que são um dos maiores acontecimentos da cultura pop dos últimos anos.
Sem a devida formação moral e intelectual, qualquer sociedade está destinada a uma mediocridade impotente que é incapaz de enfrentar os graves problemas que se impõem sobre ela
O que percebemos agora em “Not Like Us” é a repetição de um processo de expurgo que deveria acontecer em qualquer cultura saudável. A atividade cultural exige a manutenção da honestidade nos discursos e nas atuações, e foi o que Kendrick Lamar fez. Um grande farsante foi exposto ao público, e acredito que isso tem correlações com a situação cultural do Brasil. Tivemos, inclusive, um grande pivô na defesa da honestidade intelectual em nosso país: Olavo de Carvalho. Ele defendia o rastreio e a cobrança das figuras públicas que procuram manipular e chantagear seu público.
Quando Olavo entrou no debate público brasileiro, sua principal bandeira não era a criação de um movimento de direita e conservador — muito menos a destruição per se dos movimentos de esquerda. Seu trabalho voltava-se principalmente para o resgate da atividade intelectual genuína. Ele inicia essa retomada através da publicação do livro O Jardim das Aflições, que consiste justamente em uma exposição — das mais brilhantes — da história das ideias, mapeando onde o Brasil estava localizado no debate contemporâneo. É um livro heroico, que situou a decadência da nossa classe artística.
Quando falo de intelectualidade, refiro-me a todos cujo trabalho de alguma forma cria ou promove cultura: sejam artistas, pensadores, escritores, jornalistas, professores, comentaristas etc. Em suma, atividades que envolvem o compartilhamento de discursos e percepções. Todas elas contribuem para a formação do nosso arcabouço cultural.
Após o lançamento de sua magnum opus, Olavo de Carvalho colocou à prova suas teorias ao lançar sua segunda publicação de grande impacto: O Imbecil Coletivo. Nela, o filósofo apresenta de maneira mais prática as figuras e os processos da decadência brasileira. Nomes são citados e teses são destruídas em uma débâcle linda de ver. Depois de provar sua grandiosidade em O Jardim das Aflições, ele mostrou sua competência escatológica ao confirmar a praticidade de suas teses.
Apesar da grande movimentação política que aconteceu no final da vida de Olavo, a tônica de seu trabalho permaneceu a mesma ao longo de toda sua trajetória. A saber: sua preocupação com a construção de uma classe de produtores de cultura que fosse genuína e honesta. O próprio termo “honestidade intelectual” volta ao debate público através da boca dele.
Essa sua preocupação é das mais importantes, para não dizer a mais importante ao nosso país. Seria necessário abrir muito mais o tema para comprovar a importância crucial dessa questão, mas basta dizer que historicamente não há país que se desenvolva materialmente sem uma elite pensante preparada para dar cabo de problemas complexos na ordem da filosofia, ciências, política etc.
A honestidade intelectual é outra maneira de dizer honestidade para consigo mesmo. Precisamos dessa integridade para dizer as coisas tais quais elas estão de fato acontecendo
Sem a devida formação moral e intelectual, qualquer sociedade está destinada a uma mediocridade impotente que é incapaz de enfrentar os graves problemas que se impõem sobre ela. Uma sociedade de incapazes prefigura o caos social, pois perde-se a capacidade de ação coordenada, manutenção dos princípios, unidade nacional e legitimidade das instituições. Nenhuma civilização é capaz de manter-se de pé desse jeito. É questão de tempo para que ela necessariamente recorra à tirania como forma de manutenção de uma ordem, mesmo que parcial, mas que ao menos trará algum tipo de estabilidade. Não é necessário dizer que essa tirania precisará ser imposta à força mediante a censura e a coerção.
Ora, digam-me que esse processo não é exatamente onde o Brasil está inserido nas últimas décadas? A destituição da nossa classe falante — que se deu por vários motivos, mas que o principal deles certamente foi o monopólio do esquerdismo monotonal nos círculos pensantes, em universidades e nas editoras — é o cancro maligno pelo qual nascem todas as nossas doenças.
A situação, que poderia já ser desesperadora, torna-se absurda e quase cômica quando consideramos a atuação daqueles novos agentes que supostamente deveriam ser os representantes desse levante de honestidade na direita e no conservadorismo. Vemos, nos últimos anos, proliferar na internet e nas redes sociais um novo ativismo conservador que, em tese, deveria servir de contraponto ao monopólio esquerdista que se instaurou no Brasil.
Porém, a verdade é que, recém-formada essa pequena e barulhenta casta, quase todos se esqueceram daquele elemento de honestidade intelectual que deveria ser a pedra angular de sua atuação. Embebidos em uma nova missão de chamar atenção para si mesmos, formaram uma audiência não de leitores, alunos ou admiradores – como era de se esperar em uma atuação pública genuína —, mas de seguidores e consumidores. O dinheirismo e o carreirismo digital tomou conta dessa nova classe — fenômeno descrito em detalhe e poesia no livro Contra a Vida Intelectual, lançado recentemente por Ronald Robson.
"Hey, Drake, they are not slow" é precisamente o verso em que Kendrick Lamar indica que a massa não é idiota e que, aos poucos, o público começa a perceber as hipocrisias, mentiras e chantagens das figuras públicas. Ao menos, é a esperança que Kendrick deposita em seu público. Seu videoclipe é um festival de imagens e situações que simbolizam o retorno à realidade comum da expressão do hip hop: as comunidades de periferia, a arte de rua, os negócios locais, a dança e o espírito comunitário.
Quando Kendrick Lamar evoca os elementos de realidade da sua arte, ele está convocando todos os agentes culturais a fazer o mesmo. Ou seja, expurgar os elementos de falsidade e chantagem dinheirista que parasitam a cultura e retornar à essência da sua arte através de expressões genuínas que estejam verdadeiramente conectadas com a realidade.
Aliás, essa é a finalidade de uma atuação intelectual pública: dizer as coisas tais quais elas são e ajudar a aprofundar ou ampliar o escopo das ideias e situações em questão. Esse é um chamado que constitui essencialmente a atividade filosófica, mas que deve iluminar todas as demais vocações, sobretudo artistas, jornalistas, escritores e comunicadores.
Para isso, é necessário que, em primeiro lugar, sejamos honestos conosco mesmos. A honestidade intelectual é outra maneira de dizer honestidade para consigo mesmo. Precisamos dessa integridade para dizer as coisas tais quais elas estão de fato acontecendo — mesmo que isso não nos cause benefício material próprio. Necessitamos de uma coragem e de uma inventividade que foram sugadas para fora de nossas veias pelo vampirismo do dinheiro, da carreira de internet e do bom mocismo.
Não será possível nenhuma restauração do nosso país sem a restauração da honestidade de cada indivíduo para consigo mesmo. Deveríamos agir como os honestos agem, e não como os chantagistas. Que nós não sejamos como eles.
Matheus Bazzo é fundador da Lumine e da Minha Biblioteca Católica.
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