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Embora milhares de “especialistas” no tema tenham se multiplicado pelas redes sociais nos últimos dois anos, a verdade é que falar sobre o Donbass não é uma tarefa fácil. É preciso contar a história desde o começo, mas tampouco é simples saber quando essa história começou.
Os mais apressados diriam que tudo começou em 24 de fevereiro de 2022, quando as tropas da Federação Russa iniciaram uma intervenção militar na Ucrânia – que desde então tem sido apelidada de “invasão injustificada” pelo Ocidente e de “operação especial” pelos russos. Outros, mais atentos, apontariam o começo de tudo como a crise do Euromaidan, em 2014, quando de facto começaram os combates entre as forças do governo e as milícias separatistas no Donbass. Mas talvez precisemos ir ainda mais fundo.
A prática de analisar um conflito armado na perspectiva de um terceiro não-envolvido nos acomoda em uma situação de “observador distante”, que corriqueiramente nos brinda com um arrogante ar de “seriedade e neutralidade” – como se a experiência real fosse uma espécie de “mácula” na equação supostamente matemática da “análise”. E é assim que, de um lado, alguns “calculam” que Rússia deve vencer a guerra para “mudar a geopolítica mundial”, enquanto outros “raciocinam” que Kiev precisa triunfar para “salvar a democracia e o direito internacional”. O ar de arrogância e [tentativa de] superioridade lógica permeia ambos os caminhos e impede uma visão que leve minimamente em conta o fator humano.
A chamada “Bacia do Donets” (frequentemente abreviada em russo como “Donbass”) é um território que engloba as atuais regiões de Donetsk, Lugansk e Rostov. Rica em minérios, a bacia hidrográfica se encontrava no coração do Império Russo e passou a integrar o distrito da chamada “Nova Rússia” a partir do século XVIII.
Mas seria injusto dizer que essa realidade das “análises” se aplica de todo ao caso ucraniano. Quer por motivos de propaganda, quer por compaixão genuína, a grande mídia de massas dos países ocidentais investiu pesadamente em mostrar o sofrimento do povo ucraniano desde fevereiro de 2022. Qualquer telespectador brasileiro, estadunidense ou europeu já se acostumou a sentir uma pequena fração da dor dos civis ucranianos sendo privados de recursos básicos devido aos bombardeios russos contra instalações de infraestrutura crítica.
O mesmo, contudo, evidentemente não pode ser dito no que concerne ao povo russo. Para a mídia ocidental, os russos não existem – ou, quando existem, são invasores, agressores e assassinos que precisam ser capturados e conduzidos a Haia. Não há qualquer tipo de consideração pelo fator humano no que concerne aos russos, que são simplesmente classificados como “o lado errado” e constantemente desumanizados ou invisibilizados nas narrativas de massa.
É ao ler essa conclusão simples e acessível a qualquer observador minimamente honesto que alguns se estremecem, levantam as mãos e vociferam que “não há sofrimento russo” já que a guerra supostamente está acontecendo apenas dentro do território da Ucrânia – ignorando aqui as discussões em torno da decisão russa de anexar novas regiões a seu território. Aparentemente, apenas o povo do país afetado por bombardeios pode sofrer com um conflito, já que, obviamente, as famílias de soldados russos mortos nas hostilidades simplesmente “não existem”.
Perseguindo o objetivo de ser parte da “Europa [ocidental]”, a Ucrânia pós-Maidan inegavelmente iniciou um processo de “desrussificação” que, na prática, se comprovou desastroso, culminando em perdas territoriais (Crimeia) e guerra civil (Donbass).
O problema é que também não é destas famílias que estou falando quando menciono o “povo russo”. Não por acaso, comecei meu texto falando, não em “Ucrânia”, mas “Donbass” – que é o centro real de todas as disputas e tensões envolvendo Moscou e Kiev desde 2014.
A chamada “Bacia do Donets” (frequentemente abreviada em russo como “Donbass”) é um território que engloba as atuais regiões de Donetsk, Lugansk e Rostov. Rica em minérios, a bacia hidrográfica se encontrava no coração do Império Russo e passou a integrar, junto de outras regiões, o distrito da chamada “Nova Rússia” (Novorrossiya) a partir do século XVIII – mesma época em que russos advindos de diversas regiões do Império passaram a chegar ao Donbass para a exploração de minérios, formando a base étnica da população local.
Independentemente do que se possa argumentar desde um ponto de vista jurídico, geopolítico ou moral nos dias de hoje sobre “a quem pertence” o Donbass, é inegável que esta é historicamente uma região russa. A entrega do Donbass – assim como da Crimeia – à Ucrânia é um advento soviético, o que não surpreende, já que em meio ao regime comunista foram experimentados diversos modelos de organização territorial, muitas vezes de forma quase aleatória, com o único intuito de viabilizar meios de administração doméstica.
Com a queda da União Soviética, o Donbass, a Crimeia e outras partes da “Nova Rússia” permaneceram integradas aos Estado que se sucedeu à República Socialista Soviética da Ucrânia – a saber, a Ucrânia contemporânea. Contudo, a região nunca deixou de ter uma maioria étnica russa, não sendo o idioma ucraniano falado pela maioria de seus habitantes.
Não é difícil de se imaginar os motivos pelos quais as hostilidades que culminariam na hoje tão falada “Guerra da Ucrânia” começaram precisamente no Donbass. Uma das primeiras atitudes do novo regime ucraniano, instaurado após os eventos do Euromaidan, foi precisamente o banimento da lei de línguas cooficiais, que autorizava o uso da língua russa para fins públicos nas regiões de maioria russa. Perseguindo o objetivo de ser parte da “Europa [ocidental]”, a Ucrânia pós-Maidan inegavelmente iniciou um processo de “desrussificação” que, na prática, se comprovou desastroso, culminando em perdas territoriais (Crimeia) e guerra civil (Donbass).
Hoje pouco se fala no massacre de russos pelos nazistas, que coexistiu junto ao Holocausto judeu. Um dos episódios mais brutais deste massacre aconteceu em Khatyn, Belarus, onde várias aldeias foram reduzidas a pó pelas tropas alemãs.
E aqui podemos voltar a falar do sofrimento do povo russo. Para surpresa de muitos, desde 2014, tropas ucranianas matam russos étnicos no Donbass. Antes de qualquer unidade do Exército russo cruzar a fronteira com a Ucrânia, por oito anos, milícias de russos étnicos enfrentaram o Exército Ucraniano em um conflito civil de consequências humanitárias terríveis. Mais do que isso, em sua tentativa de “desrussificação”, Kiev abertamente iniciou medidas de assimilação forçada, incluindo implementação de bloqueio de água, comida e energia, além de bombardeios contra instalações civis, matando milhares de inocentes.
Ou seja, existe uma “questão russa” na Guerra da Ucrânia, que não começou em 2022, mas em 2014, no Donbass. De minha parte, tenho acompanhado estes desenvolvimentos desde aquela época e sempre me coloquei naquela posição confortável de “observador distante” que hoje denuncio. Rejeito tal categoria porque, por algum motivo, resolvi me tornar um “observador participante” e pisar no Donbass pela primeira vez em dezembro de 2023, já quase dois anos depois de iniciadas as hostilidades com participação direta da Federação Russa.
Alguns dias antes de minha chegada à República Popular de Lugansk (hoje reivindicada pela Rússia), havia sido inaugurado na região o memorial “As Feridas Abertas do Donbass”. O governo russo escolheu uma vala coletiva para a construção do memorial, onde agora epitáfios cobrem o solo onde foram enterrados corpos de cerca de quatrocentos civis russos étnicos mortos pelo bloqueio humanitário imposto por Kiev ao Donbass no verão de 2014, em pleno auge das hostilidades com os separatistas.
Visitei o memorial e a primeira coisa que me chamou atenção foi a grande estátua que figura no centro do sítio. A imagem é a de uma mãe segurando nos braços o corpo de uma criança assassinada – e a razão específica para minha atenção não fora exatamente o teor dramático e comovente da cena, mas uma lembrança fresca em minha memória.
Alguns dias antes de me dirigir ao Donbass, estive na República de Belarus, onde participei de uma conferência local comemorativa do septuagésimo quinto aniversário da Convenção da ONU sobre o Crime de Genocídio. Dentre as atividades da Conferência, houve uma expedição ao Memorial de Khatyn, a alguns quilômetros da capital, Minsk.
E aqui entramos em outro assunto que certamente parecerá surpreendente para muitos leitores: russos foram assassinados na Segunda Guerra Mundial! Por esquecimento ou conveniência, hoje pouco se fala no massacre de russos pelos nazistas, que coexistiu junto ao Holocausto judeu. Um dos episódios mais brutais deste massacre aconteceu em Khatyn, Belarus, onde várias aldeias foram reduzidas a pó pelas tropas alemãs.
Khatyn é hoje uma cidade fantasma, preenchida de epitáfios e capelas, onde se toca um sino a cada minuto em melodia fúnebre, e tendo em seu centro uma estátua em memória de Kaminsky, reproduzindo a imagem do sobrevivente com o corpo do filho no colo.
Em março de 1943, mais de cinco mil vilas bielorrussas foram destruídas pelas forças armadas alemães e pelas Waffen-SS, sendo o caso mais emblemático o da cidade de Khatyn, em 22 de março. Conta-se que os alemães chegaram na cidade, onde havia sido também instalado um campo de prisioneiros, e evacuaram todos os habitantes para dentro de um único galpão, ateando fogo no local e deixando 140 mortos – 75 dos quais, crianças.
Apenas um adulto sobreviveu ao incêndio. Seu nome é Yuzif Kaminsky. Ferido a tiros e queimado vivo, Kaminsky resistiu aos ferimentos para ter a infelicidade de encontrar o corpo moribundo de seu filho em meios às cinzas, pegando-o no colo, mas não tendo qualquer meio de evitar-lhe o mesmo fim das demais crianças da vila.
Khatyn nunca foi reconstruída. O governo soviético chegou à conclusão de que a forma mais respeitosa de lidar com a memória das vítimas seria através da transformação da cidade em um memorial público. Khatyn é hoje uma cidade fantasma, preenchida de epitáfios e capelas, onde se toca um sino a cada minuto em melodia fúnebre, e tendo em seu centro uma estátua em memória de Kaminsky, reproduzindo a imagem do sobrevivente com o corpo do filho no colo – exatamente como anos mais tarde os arquitetos russos fariam em Lugansk, despertando minha curiosidade.
Enfim, ao ver a imagem no Memorial de Lugansk, comentei com Andrey, meu tradutor sobre a similaridade com Khatyn e sobre o estranho misto de emoções que aquilo estava me causando no momento. Andrey, com paciência, respirou fundo e comentou comigo que “aqui [no Donbass], Kiev fez seu próprio Khatyn”. E alguns segundos depois uma nova frase “solta” suficientemente forte para despertar reflexões: “é tudo sobre russofobia”.
E temos então outra questão que talvez poucos leitores conheçam, mas existe um número gigantesco de “fobias” para além daquelas que preenchem o léxico acadêmico-político – e muitas delas são fortes a ponto não apenas de causar mortes, mas verdadeiros genocídios, como em Khatyn ou no Donbass.
O ódio a russos é um problema real que vez ou outra tem sido usado como ferramenta política. Os nazistas, além de antissemitas, eram também russofóbicos e criaram todo o seu “Plano para o Leste” com base em um projeto de extermínio sistemático da população russa. Na Guerra Fria, os americanos não ficaram muito atrás no quesito russofóbico, ajudando com sua indústria cultural a alimentar toda forma de ódio ou medo direcionado à Rússia para ganhar mentes na disputa psicológica com os soviéticos.
Décadas depois, perseguindo o “sonho europeu”, os políticos ucranianos pós-Maidan brincaram com o fogo da russofobia de forma grave a ponto de o então Ministro do Interior Arsen Avakov, em 2014, incorporar como “tropas domésticas” as milícias “Batalhão Azov”, “Praviy Sektor”, “S14” e outros grupos conhecidos por ostentarem símbolos neonazistas e vociferarem ódio à Rússia e aos russos.
A partir do momento que estes grupos começam a ser usados contra a população russa no Donbass, os argumentos para o Kremlin falar em uma necessidade de “desnazificar” a Ucrânia começam a ser fortalecidos, o que explica a popularidade das medidas militares russas entre os civis no Donbass – fato este que também testemunhei com meus próprios olhos.
No Donbass, não há qualquer vestígio de Ucrânia. Não se fala ucraniano e abundam símbolos russos e soviéticos por todos os lados. A letra “Z”, que se tornou um ícone militar russo, pode ser vista em praticamente qualquer parede da cidade, assim como fotos de Vladimir Putin e frases de efeito como “Rússia: nossa casa”. Ao caminhar pelas ruas do Donbass, é extinto qualquer vestígio de “surpresa” com os índices altíssimos de aprovação à Rússia nos referendos do ano passado. O povo local parece realmente querer viver na Rússia – talvez porque Kiev não tenha dado outra chance a eles.
Na região, só há dois tipos de estradas: algumas muito novas e outras muito velhas – o que também vale para casas e construções. Segundo meu tradutor e outras pessoas com quem conversei, as mais novas são aquelas feitas pelos russos desde o ano passado, enquanto as velhas são soviéticas. A qualquer um que se pergunte sobre o período ucraniano, a resposta é a mesma: “nada”. Segundo os locais, os investimentos na região quase zeraram desde a queda do comunismo. O Euromaidan foi o estopim para a perseguição, mas a marginalização, o preconceito e a segregação, contam eles, vinham se desenvolvendo desde 1991.
As famosas minas do Donbass também parecem próximas à letargia absoluta. Segundo eles, não há mais maquinário adequado para continuar explorando carvão, já que todo o equipamento existente é da era soviética, tendo a mineração se reduzido a níveis semi-artesanais desde então. Mais do que isso, em conversa longa e proveitosa com o Ministro das Relações Exteriores de Lugansk, Vladislav Deinego, ouvi que Kiev supostamente induziu o Donbass à desindustrialização massiva, o que explica o fato de praticamente não se ver mais fábricas naquela que um dia fora a capital industrial da Rússia e da União Soviética.
Segundo todos os meus interlocutores, a russofobia sempre esteve presente na Kiev pós-soviética – pelo menos em algum grau –, tendo, contudo, em 2014 se tornado a diretriz central da política ucraniana. É de se especular que os aliados da Ucrânia pós-Maidan – EUA, OTAN, EU – tenham de alguma forma se interessado no fomento a estes sentimentos com uma forma de desenvolver uma ferramenta geopolítica, mas, definitivamente, não é este o mérito do texto
O fato é que há uma “questão” no que concerne aos russos do Donbass. E há a russofobia, que permanece viva hoje como nos tempos do massacre de Khatyn. Ao apoiar massivamente as ações militares russas, o povo do Donbass parece estar reagindo da única forma que lhe é possível à violência que lhe tem sido infligida ao longo dos anos. Insuflado pela memória ancestral de uma guerra que dizimou 27 milhões de russos, o sentimento atual do povo do Donbass é o de estar embarcando em uma nova luta patriótica.
Para os ocidentais, a “desnazificação” da Ucrânia pode ser mera propaganda do Kremlin, mas para os civis russos étnicos do Donbass, que são aqueles no meio do fogo cruzado, esta é uma causa legítima. No olhar dos populares, é uma luta inevitável e uma vingança patriótica. E não foi o Kremlin que criou este sentimento – ainda que se possa eventualmente dizer que esteja se aproveitando dele.
Apenas indo ao Donbass e conversando com os locais se pode perceber que o fantasma da “propaganda russa” ali não tem qualquer validade – é o povo falando da forma mais espontânea e orgânica possível. E se estas falas coincidem com as narrativas oficiais do Estado russo, então talvez haja uma questão realmente profunda a ser analisada.
Por isso, retornando ao fator humano mencionado anteriormente, talvez seja a hora de olhar com mais carinho e horizontalidade para o povo russo. A desumanização e a invisibilidade não levaram a outro destino senão justamente ao conflito atual. É hora de se buscar uma nova abordagem.
Lucas Leiroz é jornalista e analista geopolítico, colunista nos portais InfoBRICS, CGTN, Global Researcher e Veterans Today. Foi correspondente de guerra no Donbass.
O título tinha um erro tipográfico em Khatyn.
Atualizado em 21/12/2023 às 13:19
Conteúdo editado por: Bruna Frascolla Bloise