Em tempos de crise social, os melhores termômetros da normalidade são uma imprensa livre e um Poder Judiciário independente. Sobretudo quando vivemos num clima de lavanderia nos poderes Executivo e Legislativo e numa parcela do empresariado que, à semelhança daqueles poderes, era tida como intocável até então: muita roupa suja sendo lavada a jato.
Diante dos avanços mais conhecidos até as mais profundas trevas do poder, parece que chegamos ao último círculo desse inferno dantesco. Os envolvidos, em sua retórica perversa, agora, demonstram-se capazes de ir mais longe na insensata marcha de exacerbação da sem-vergonhice, apoiados por um séquito de uma minoria de juristas que, em muitos argumentos, poderiam compor uma fila de traidores intelectuais do Direito. Não me estranha. Nosso subdesenvolvimento moral não é improvisado. É obra de séculos.
Admiro a criatividade dos envolvidos, mormente quando a realidade lhes é adversa e as sombras marcam o compasso na busca de um projeto criminoso de poder, no dizer de um ministro do STF. Entretanto, quando o rol de desculpas para as seguidas denúncias esgotou-se, a inovação esvaiu-se e sobrou somente a arma do ataque diversionista.
Então, a turma dos envolvidos – acompanhada pelo coro de alguns ministros do STF, cujos nomes todos sabemos, sendo alguns aderentes de última hora – resolveu partir para estancar a operação que os incrimina e, por tabela, o aplauso popular que a sustenta. Prelúdio de um suicídio político. Aliás, até nisso somos singulares. No resto do mundo, o suicídio seria de outro tipo: uma bala na cabeça e muito sangue em volta.
Esse prelúdio é seguido de muitos atos que mais lembram um pancadão de funk: a mesma melodia, nenhuma harmonia, muito palavrório e uma nota só. No primeiro ato, vivemos sob a vigência do duplo grau de jurisdição e, por isso, existe sempre a possibilidade da revisão de uma decisão de um juiz singular por um órgão colegiado. Contudo, a turma dos envolvidos clama por postergar a prisão até o último grau de jurisdição, numa interpretação elástica e quase infinita do princípio da presunção de inocência.
O STF passou a atuar como um poder institucional ilimitado, para além do que autoriza a própria baliza constitucional
No segundo ato, essa turma agrava a tática suicida ao manipular a militância cega e os blogs dos jornalistas enfeitiçados pela ideologia esquerdopata, como massa de manobra em favor da tese de que a Operação Lava Jato já cumpriu sua “função social” e que seus “excessos” justificariam, doravante, a aplicação de uma espécie de freio e contrapeso pelo STF.
No terceiro e mais importante ato, porque está na base dos anteriores, a proposta suicida tem um rótulo juridicamente muito sedutor: o decisionismo judicial, fenômeno muito marcante no STF nos últimos anos, e que coloca o império não mais na norma, mas no poder que aplica a norma e que, por ser um poder soberano, resta ilimitado, de modo que, além de aplicá-la, pode excepcioná-la, ou seja, suspender a sua aplicação.
Essa ideia de direito transcende a própria noção de que uma Constituição estabelece as linhas mestras de um Estado e, no lugar, compreende o Estado como um poder anterior à própria Constituição; por isso, aquele que detém a autoridade de decidir pode, dentro da racionalidade desse sistema, atuar ilimitadamente.
Se o Estado de Direito pressupõe a supremacia constitucional, o Poder Judiciário deve atuar dentro dos limites constitucionais e não os sobrepor. Deve moderar e não tensionar. O problema está no fato de que o decisionismo judicial viriliza o controle do Poder Judiciário sobre os demais poderes e, como não existe controle institucional sobre as decisões do STF, o céu é o limite.
Uma vez na órbita celeste, estaremos no campo de uma hermenêutica jurídica arbitrária, a abranger uma complexa e autoproclamada rede de liberdades, sobretudo de natureza ética e epistemológica, e a provocar, como efeito imediato, o construcionismo social pela pena dos ministros de nossa suprema corte judicial.
Em linguagem acadêmica, poderíamos afirmar que o decisionismo judicial faz renascer o positivismo jurídico como positividade da vontade que institui seus próprios direitos. Estaríamos, dessa forma, diante de um direito sem destino, um direito que vai e vem, um direito que não sabe seus objetivos, seus porquês, e nem aonde ir buscar seus referentes reais.
Um direito submetido a um incessante e togado querer, baseado na opção fundamental de que cada julgador escolhe seu próprio Deus. Desnecessário lembrar que, num ambiente tão voluntarista, não há espaço para o justo concreto, mas apenas para o interesse circunstancial e submetido à esfera da vontade de poder.
Por aqui, já foi o tempo em que sociedade supunha que o STF, enquanto reserva moral social, imporia uma autolimitação, mediante uma prudente observância da ordem constitucional posta. De uns tempos para cá, passou a inovar na realidade social, ao estabelecer, por si só, uma série de critérios subjetivos para o julgamento dos atos legislativos e executivos discricionários. Criou uma espécie de deus-nos-acuda jurisprudencial nesses casos. Não anima a lei (Aristóteles) e nem atua como a boca da lei (Montesquieu): transformou-se no ventríloquo da lei, a proclamar a voz do arbítrio.
Ao cabo, o STF passou a atuar como um poder institucional ilimitado, para além do que autoriza a própria baliza constitucional, ultrapassando a fronteira de uma sadia hermenêutica retórico-prudencial para dar azo ao mais puro e perigoso decisionismo, na medida em que ele abala a segurança jurídica e solapa, aos poucos, a democracia.
Até chegar a hora em que alguém resolva, como “solução mágica”, fazer o desfavor de mandar um cabo e um soldado para encerrar a sessão dos ministros mais cedo. Não resolve um problema e ainda cria outro. É preciso vencer a tentação de se frear a Operação Lava Jato. Sem decisionismo centrifugador e com mais água e sabão para o completo enxágue pelo justo concreto.
André Gonçalves Fernandes, post-Ph.D., é professor-coordenador do CEU Law School e pesquisador da Unicamp.
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