Imagine um enorme quebra-cabeça, composto de peças grandes que por sua vez também são quebra-cabeças, formados de peças pequenas. Um quebra-cabeça maior de quebra-cabeças menores.
A união das peças grandes forma uma ampla e rica imagem, como uma detalhada fotografia. Já em cada peça grande, que é um quebra-cabeça tomado isoladamente, é possível identificar imagens como uma casa, um veículo, um animal ou uma árvore, mas também há pedaços de coisas que só podem ser compreendidas quando tais peças grandes são conectadas ao quebra-cabeça maior.
Imagine, ainda, que padrões se repetem nas diferentes grandes peças – parte das imagens e peças é idêntica. Como cada peça grande é também um quebra-cabeça em si, conhecer algumas das peças grandes contribui para a montagem das demais. Por isso, espalhar as peças dificulta o trabalho.
As peças do quebra-cabeça da Lava Jato passaram a ser, nos últimos anos, espalhadas pelo país, de forma contraproducente
Para conferir sentido a cada peça, pequena ou grande, a única solução é aproximar e unir as peças pequenas e também as grandes. O isolamento das peças grandes, como se fossem realidades à parte, é contraproducente para a própria montagem de cada quebra-cabeça menor, para a identificação de diversas das imagens e para a compreensão do todo.
É esse isolamento que ocorre atualmente na Lava Jato.
A investigação – pois toda investigação é um quebra-cabeça – apura uma imensa série de fatos que guardam relação entre si. Operadores financeiros lavavam dinheiro para diferentes empreiteiras e políticos. Estes mantinham esquemas com diferentes empresas e em diferentes órgãos públicos. Empreiteiras corrompiam agentes de variados partidos em órgãos federais, estaduais e municipais, valendo-se daqueles operadores. Tudo isso é um emaranhado ou uma teia complexa de relações criminosas, um verdadeiro quebra-cabeça gigante da corrupção no Brasil, formado de quebra-cabeças menores que retratam esquemas de corrupção em determinados setores ou entidades públicas e privadas.
Como acontece em quebra-cabeças, a compreensão de cada uma de suas peças é iluminada pelas outras peças e pelo conjunto que formam. De fato, a “parte” ganha sentido no “todo”: uma palavra, no texto; uma nota musical, na música; e uma prova, no conjunto das outras provas de uma investigação.
- Primeiro artigo da série: O desmonte do combate à corrupção
- Segundo artigo da série: Torniquetes que estancam a sangria causada pela delação premiada
- Terceiro artigo da série: O verdadeiro abuso dos juízes que combateram a corrupção
- Quarto artigo da série: Juiz de garantias: garantia de quê?
- Quinto artigo da série: A regra de que os réus delatados falem por último causa quanta demora e impunidade?
- Sexto artigo da série: Como um precedente do STF derrubou o processo de Pasadena
Apesar das vantagens da investigação conjunta dos muitos fatos relacionados e da existência de respaldo legal para isso, as peças do quebra-cabeça da Lava Jato passaram a ser, nos últimos anos, espalhadas pelo país, de forma contraproducente.
Recentemente, por exemplo, um tribunal determinou a remessa para São Paulo da ação penal proposta pela Lava Jato em Curitiba contra Paulo Vieira de Souza, que foi apontado como suposto operador de propinas do PSDB. Na acusação, narrou-se a sua participação na lavagem de mais de R$ 100 milhões. Para montar o quebra-cabeça desse caso, foram utilizadas diversas peças emprestadas de outros casos, como evidências de transações financeiras no exterior feitas por Andrade Gutierrez, Camargo Correa e Odebrecht, grandes empreiteiras que celebraram acordos de leniência na Lava Jato.
Dentre as provas utilizadas com origem em outros casos, estão ainda depoimentos de operadores financeiros que firmaram acordos de colaboração premiada, como Adir Assad. Provas da atuação de outro doleiro, que também foi acusado na Lava Jato, foram importantes para entender a lavagem milionária. Somaram-se ainda evidências de que Paulo Vieira gerou recursos em espécie para empreiteira que, no mesmo período, destinou dinheiro vivo para pagar propinas a funcionários da Petrobras, o que constava no sistema de gerenciamento de propinas daquela empresa.
Só foi possível juntar todas essas peças, espalhadas nas investigações de diferentes casos, porque estavam em um único lugar. São provas que, analisadas em conjunto, permitem o aprofundamento da investigação de crimes antes desconhecidos. Se a apuração de cada um dos fatos acima – de cada empreiteira, de cada doleiro, de cada esquema – fosse separada, não seria possível formar o quebra-cabeça. A compreensão do todo seria impedida ou, na melhor hipótese, prejudicada.
Fragmentar uma grande investigação é uma estratégia de defesa. Funciona como separar as peças de um quebra-cabeça do conjunto que lhe confere sentido
Isso acontece o tempo todo na operação. Não é à toa que réus na Lava Jato já fizeram 362 pedidos para que seus casos saíssem da Vara Federal em Curitiba. Fragmentar uma grande investigação é uma estratégia de defesa. Funciona como separar as peças de um quebra-cabeça do conjunto que lhe confere sentido. A separação dos casos e sua remessa para outros locais dificulta a reconstituição dos crimes e afasta os investigados de um lugar em que o combate à corrupção está funcionando – e está, em boa medida, em razão da sinergia entre as diferentes investigações.
Assim como o caso de Paulo Vieira, outras investigações bastante relacionadas às demais têm sido retiradas de Curitiba. São exemplos a apuração de corrupção na construção da usina hidrelétrica de Belo Monte e a investigação do pagamento de subornos na edição de medidas provisórias, envolvendo o ex-ministro Guido Mantega. Estão sendo discutidos ainda o desmembramento dos casos envolvendo o Banco Paulista e o Grupo Gamecorp-Gol. Em todos esses casos, o quebra-cabeça foi montado com provas que decorreram diretamente das investigações em Curitiba, e a compreensão do todo depende de manter as partes juntas.
Os fatiamentos que esvaziam a Lava Jato têm por base uma decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal no fim de 2015, quando uma maioria de seus ministros traçou um limite aleatório na jurisdição de Curitiba: a operação deveria ser restringida à Petrobras. Casos como aquele envolvendo a Eletrobras e o Ministério do Planejamento foram enviados para outros estados.
Contudo, tal precedente não deve ser interpretado de modo cego, por três razões.
Primeiro, a lei continua a valer. O Código de Processo Penal estabeleceu, no seu artigo 76, que investigações e processos devem correr perante a mesma Vara Federal quando “a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração”. É a chamada “conexão probatória”, que acontece quando a prova de um crime é meio ou instrumento para provar outro delito. É como a ideia que orienta o encaixe das peças do quebra-cabeça: duas peças devem ficar juntas quando encaixam uma na outra, permitindo visualizar uma figura antes recortada. Essa conexão está claramente presente em diversos casos da Lava Jato que integram uma mesma teia criminosa, mas que têm sido enviados, sem uma reflexão aprofundada, para outras jurisdições.
Em segundo lugar, deve-se tomar em conta o próprio sentido da decisão do Supremo. Ao determinar que crimes relacionados à Petrobras devem ficar em Curitiba, o significado da decisão é que delitos praticados no âmbito da Petrobras têm uma relação entre si que seguramente caracteriza conexão probatória. Contudo, isso não afasta a possibilidade de conexão probatória entre esses e outros delitos.
Em terceiro lugar, deve-se examinar o precedente do Supremo em conjunto com os demais precedentes daquele e de outros tribunais. No início da Lava Jato, investigavam-se quatro organizações criminosas situadas em diferentes locais do país, e, em razão da conexão probatória, foram mantidas em Curitiba por todos os tribunais, inclusive o STF. Depois de investigar doleiros, a apuração avançou sobre crimes de corrupção praticados por Paulo Roberto Costa, na Petrobras. Mais uma vez, as cortes entenderam que a relação entre os crimes dos doleiros e do funcionário público demandava que todos fossem investigados em Curitiba. O mesmo ocorreu quando a Lava Jato se estendeu para outras áreas da própria Petrobras e de suas subsidiárias.
Diversos casos da Lava Jato integram uma mesma teia criminosa, mas têm sido enviados, sem uma reflexão aprofundada, para outras jurisdições
A lógica que guia a união desse universo bastante distinto de crimes é a da conexão probatória. Não é aceitável traçar uma linha aleatória e irrefletida para conter a Lava Jato à Petrobras quando a regra legal da conexão probatória demanda, para a eficiência das investigações e processos, que os crimes sejam analisados conjuntamente.
A questão tem importantes efeitos práticos: esvaziar a Lava Jato em Curitiba, por ser onde a maior parte das peças do quebra-cabeça está, priva a sociedade de resultados relevantes em termos de responsabilização de corruptos e recuperação do dinheiro desviado. De fato, foram espalhados para praticamente todos os estados do país mais de uma centena de investigações desmembradas da Lava Jato no Paraná, mas, por enquanto, apenas no Rio de Janeiro vingou trabalho semelhante. Apesar de haver procuradores, juízes e policiais competentes e dedicados por todo país, o sistema de Justiça é ainda um terreno árido para que investigações complexas contra poderosos cresçam e frutifiquem.
Se queremos que a imagem inteira da corrupção seja revelada e que o combate à corrupção renda bons frutos, é importante que a lógica da conexão probatória seja preservada. As peças do quebra-cabeça devem ser montadas. É preciso conhecer a corrupção política em toda a dimensão possível e responder a ela com firmeza.
Espalhar as peças desse grande quebra-cabeça fará com que a figura completa jamais seja revelada para a sociedade.
Deltan Dallagnol e Júlio Noronha são procuradores da República e integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
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